Aprendi a ver futebol com aquele São Paulo de Telê. Na verdade, naqueles anos de infância, o São Paulo era de Raí. A molecada não tinha essa cisma de ser zagueiro, lateral, volante. Ou era matador, ou era camisa dez. E o dez do tricolor era inspiração pra toda uma geração.
Naqueles tempos, não sabia bem quem era Sócrates. Rezava o pensamento infantil que, se era corintiano, tanto fazia, boa gente não era. Só muito tempo depois fui ouvir falar em Democracia Corintiana, e para mim aquilo nada significava.
Passou mais um tempo até entender de que se tratava tal democracia, e um outro tanto para saber quem era Sócrates Brasileiro. Até hoje, admito, não sei qual o grau de categoria do Doutor dentro de campo – sei, claro, que era muito, mas o que de verdade me importa é saber sobre as movimentações extracampo daquele Corinthians da década de 80.
Desde que entendi a Democracia Corintiana, a admiração por Magrão só faz crescer, ao mesmo tempo em que aumenta o desprezo por Émerson Leão. Fico até chateado quando perco um Cartão Verde, de quinta-feira, na Cultura – dá-me a sensação de que perdi a chance de ganhar um pouco de genialidade, rara constatação quando estamos em frente à tevê.
Hoje, tenho certeza de que Raí foi um grande jogador da história do São Paulo. Magrão foi um grande militante da sociologia do futebol. E não tenho dúvida de qual dos dois foi mais importante.
Faz umas semanas, encontrei Sócrates e tive a oportunidade de conversar rapidamente com ele. A conversa, em si, nada demais teve, apenas uma troca de impressões sobre o filme Lula, o filho do Brasil, mas o suficiente para entrar na minha lista de coisas que justificam amar o jornalismo.
Bem, tudo isso para dizer que, num desses chuvosos fins de semana, Magrão concedeu prolongada entrevista para a TV Cultura. Uma bela entrevista. Quem quiser ver tudo pode buscar na internet, porque cá eu já falei demais e chega a hora de irmos ao assunto de fato. De tudo o que ele falou, seleciono a parte em que dá uma forte declaração: “A Copa do Mundo é uma grande feira de futebol. Você vai ali, expõe seu produto e o público é quem decide pelo sucesso”.
Seguindo no raciocínio, diz Sócrates que quem ganha o Mundial passa a ser copiado durante o período subseqüente. E eis que a Itália, que sei pela boca dos outros, pois não era mais que um projeto de ser humano, ganhou em 1982, selando o destino do futebol daí por diante: o jogo mais sisudo, de força e de resultado, sobrepôs-se à técnica e à arte mostradas pela Seleção Brasileira.
Some-se a isso uma recente coluna de Tostão, outro mestre das chuteiras, na Folha de S. Paulo. Filosofava o ex-jogador sobre a entrevista dada por Defederico, jogador do Corinthians, ao jornal Olé. Tostão alertou para as críticas de Defederico ao futebol brasileiro: engordou quase cinco quilos desde que chegou, fruto de bombas e vitaminas, e todos ficam bravos quando ele para a bola no meio-campo para pensar o jogo.
Pois bem, os pensamentos de Tostão e Sócrates podem dar uma importante indicação de o porquê de a Argentina estar há mais de quinze anos em jejum de títulos com o time profissional – nem uma mísera Copa América, Copa Ouro, nada. Os argentinos, talvez, não tenham se adaptado tão bem quanto o Brasil ao futebol de resultados, talvez cismem nessa coisa chata de jogar bonito. Continuam sofrendo de um antigo problema sul-americano, que são as zagas ruins, algo que o Brasil superou há mais de uma década com seus zagueirões made for export.
Talvez isso explique também porque a Argentina continua fabricando camisas dez em razoável ritmo. Riquelme é o principal deles, mas há outros. E talvez por isso continuem tendo um toque de bola bonito de ver.
Sócrates, na supracitada entrevista, afirmou que a Argentina de 1994 foi a mais bela Argentina que ele viu jogar – claro, até Maradona ser sacado pelo doping. Se lembrarmos as últimas copas, em quase toda os argentinos chegam com um lindo toque, jogam uma primeira fase magistral, mas caem pelo caminho. Para Magrão, não importa. Dando mais um motivo para que possamos julgá-lo, no mínimo, diferenciado, Sócrates fala que o título não tem qualquer valor, é só mais uma representação de casta da sociedade. Ele pensa: “Quer fazer alguma coisa que de fato ficará para a sociedade, que de fato pode representar algo? Escreva”.
Bem, aqui o faço. Ou tento, pelo menos.
João Peres é jornalista e colunista do Nota de Rodapé
Um comentário:
Observação simples e direta sobre o seu texto, João: magnífico!
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