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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Lula e o mundo em transformação

O novo posicionamento brasileiro na diplomacia global -- com destaque para o envolvimento do Itamaraty nas questões iraniana e palestina -- não é gratuito. Pelo contrário, nasce de uma mudança de patamar político e econômico do país no cenário internacional.
Durante o governo Lula a imagem do Brasil no exterior só fez crescer. É verdade que ainda ostentamos uma pobreza avultante, somos agredidos diariamente pela desigualdade e padecemos de um caso crônico de corrupção. Porém nossos índices sociais têm melhorado e, de acordo com as estatísticas, somos agora menos subdesenvolvidos que outrora.
O mercado interno, graças ao Bolsa Família e aos sucessivos reajustes do salário mínimo, é mais pujante. Isso faz com que o país consuma mais, tanto seus próprios produtos quanto os importados. Como a relevância internacional de uma economia está em sua capacidade de consumir, o Brasil ficou mais importante. Não tanto como a China e ainda longe dos padrões estadunidenses ou europeus, mas na América do Sul não há ninguém que o iguale em poder de compra.
Some-se a isso seu tamanho continental, a ausência de problemas territoriais, a uniformidade do idioma e uma jovem mas estável tradição democrática que desde a saída dos militares não tem registrado oficialmente golpes de estado ou fraudes eleitorais... e voilá! Eis o país do futuro transformado em presente aos olhos do mundo.
Não há dúvidas de que a figura de Lula tem contribuído – e muito – com esse novo status brasileiro. O já desgastado clichê do ex-operário que virou presidente arrebatou o coração dos líderes internacionais, e sua preferência por estabelecer e fortalecer relações com os países do Sul ajudou a amortiguar a hegemonia do Norte sobre o globo terrestre.
A correlação de forças internacionais está mudando.
O mundo voltou a ser genuinamente multipolar e o Brasil busca seu naco na redistribuição das zonas de influência que neste exato momento é negociada nos salões secretos do poder.
No passado foram necessárias duas guerras mundiais para que os novos donos do mundo desbancassem os velhos. Os Estados Unidos superaram a Inglaterra após a dupla derrota de alemães e italianos na primeira metade do século 20. Alguns séculos antes, Espanha e Portugal perderam a hegemonia depois que os britânicos conseguiram frear a volúpia expansionista de Napoleão Bonaparte sobre a Europa. A última transição se deu, sem conflitos de grande escala, com a queda do muro que dividia Berlim em metades capitalistas e socialistas.
Agora se lavra um novo processo de transferência de mando. Os norte-americanos, que reinaram absolutos até os estertores do século passado, passaram a colher reveses simbólicos e econômicos por todos os lados. E, em boa parte, foram eles mesmos os culpados pela perda progressiva de hegemonia.
Na América Latina, por exemplo, a influência dos Estados Unidos começou a arrefecer após o fracasso da ALCA e a queda das Torres Gêmeas. A Casa Branca, então, concentrou suas atenções nas bilionárias campanhas militares para derrubar Saddam Hussein e os talebãs. Tamanho esforço de guerra no Iraque e no Afeganistão naturalmente afastou o Tio Sam de seu quintalzinho geopolítico, abrindo espaço para que, pela primeira vez na história, partidos e candidatos anti-imperialistas assumissem o governo em vários países da região. Foi o “renascimento da esquerda” latino-americana, da qual Lula faz parte.
A Ásia também se transformou em outro foco de dissenso para os Estados Unidos. O governo japonês, aliado incondicional das políticas ianques desde Hiroshima e Nagasaki, agora trabalha para desalojar a base militar que Washington mantém na ilha de Okinawa. A Geórgia colheu duros reveses ao tentar se desvencilhar da influência russa recorrendo a expedientes pró-estadunidenses: foi invadida por Moscou e perdeu parte de seu território na guerra geograficamente mais próxima da Europa neste alvorecer de século. O quadro asiático se completa com a China, que arrebatou dos Estados Unidos o título de maior poluidora da atmosfera e de quebra também levou títulos de sua dívida pública – a maior do mundo.
O signo mais expressivo de que as coisas estão mudando na geopolítica global, porém, parece ter sido a última grande crise econômica. Nascida e criada nos países desenvolvidos, a debacle das bolsas e dos bancos trouxe consigo a certeza de que o mercado não é um deus – e muito menos um deus autorregulável. Caiu por terra a ideologia neoliberal de que o estado é um entrave ao desenvolvimento, porque não fosse o estado e suas reservas financeiras hoje haveria legiões de executivos tomando sopão noturno e pedindo esmola nas esquinas de Nova York.
Curiosamente, os países emergentes desta vez sofreram menos do que os desenvolvidos. Os índices de desemprego falam por si. E o que mitigou os efeitos da crise no Brasil foi exatamente um mercado interno mais robusto e menos vulnerável ao humor dos compradores externos. Continuamos extremamente dependentes da exportação, claro, mas hoje menos que antes. Logo, nossa economia tem mais peso. Logo, podemos apitar mais sobre os rumos do mundo.
Por isso o Itamaraty ampliou seu leque de ações, antes restrito à América do Sul, e briga por um espaço no diálogo internacional sobre a proliferação nuclear no Irã e nas negociações de paz na Palestina. É fato que a influência diplomática de um país em última análise depende do poder de fogo militar e econômico que pode colocar em cima da mesa. “A guerra é uma extensão da política”, dizia um teórico.
Em relação ao Oriente Médio, o Brasil não tem peso relevante no que se refere a capacidade bélica ou financeira. Mas, no caso da questão Israel-Palestina, isso é bom. Estados Unidos, Europa e a Liga Árabe não podem ser considerados atores neutros nas negociações de paz. Cada um deles carrega interesses bem demarcados que extrapolam o mero desejo pacifista de acabar com a matança entre judeus e muçulmanos. Uns são pró-semitas, outros são anti-semitas, uns estão de olho na venda de armas, outros nas vantagens econômicas, enfim.
O Brasil a rigor está interessado apenas na paz entre israelenses e palestinos. Por quê? Porque sim, oras. A guerra que se arrasta desde a fundação do estado de Israel é um dos principais focos de instabilidade militar em todo o mundo, ninho de intolerância e racismo que não raro desembocam em massacres e ataques suicidas. A diplomacia brasileira é favorável à criação de um estado palestino porque é em sua inexistência que fervilha tanto ódio.
Ambos os lados da contenda têm motivos para acreditar que o Brasil tem interesses legítimos no fim das hostilidades. O máximo de proveito próprio que poderíamos tirar de uma eventual paz intermediada pelo Itamaraty seria capitalizá-la a nosso favor na hora de galgar posições mais privilegiadas no concerto das nações. Se o Brasil de fato ajudar na construção da paz, será uma reivindicação mais que merecida.
No caso do Irã o raciocínio é semelhante. Deve ser complicado para Mahmoud Ahmadinejad ouvir Estados Unidos, Rússia, China e França, todos eles detentores de bombas atômicas, dizendo que os iranianos não podem desenvolver tecnologia nuclear nem mesmo para fins civis.
Já a voz do Brasil é mais coerente. Primeiro, porque não se trata de uma potência nuclear, não tem armas atômicas e há muito tempo não entra em guerra com ninguém. Depois, porque tem conseguido enriquecer urânio para geração de energia e outros objetivos que passam a quilômetros de distância da agressão militar.
Portanto, é um interlocutor qualificado, que tem moral para dizer ao Irã que não se deve construir artefatos bélicos com tecnologia nuclear e também para mostrar ao mundo que sim é possível dominar o ciclo do urânio respeitando os tratados internacionais e sem descambar para a violência.
Tanto nos diálogos com o Irã como nas negociações entre israelenses e palestinos, o Brasil desempenha um papel simbólico. Não no sentido de que sua presença é ineficaz ou que sua voz não será ouvida, mas porque, além de encarnar um exemplo, carrega consigo alguns valores que confirmam esse exemplo.
Nem só de porrete se faz política externa. O mundo está cansado de hipocrisia, e os valores defendidos pela diplomacia brasileira estão todos eles expostos nas declarações que as Nações Unidas foram ratificando desde sua criação. É por isso que Lula dedica tantos discursos em favor do fortalecimento da ONU, cuja liderança ficou seriamente comprometida depois que os Estados Unidos atropelaram a decisão do Conselho de Segurança e se utilizaram de um duvidoso conceito de “guerra preventiva” para invadir o Iraque.
Portanto, não é que Lula seja um apoiador de Ahmadinejad. Seu governo apenas defende o direito de um país desenvolver, como o Brasil desenvolveu, tecnologia nuclear para fins civis – e só civis. Não é que Lula tenha um pé no anti-semitismo, mas sim que a diplomacia brasileira defende o direito dos palestinos a um estado, assim como defende o direito dos judeus ao território definido pelos acordos de 1967. É um princípio de convivência pacífica
Não há nenhum resquício de mania de grandeza ou complexo de superioridade nessas novas empreitadas diplomáticas. O avanço da influência brasileira sobre os assuntos mais candentes do cenário internacional é apenas a consequência natural de um mundo em transformação.

Tadeu Breda, jornalista, é colunista do Nota de Rodapé e vive em Latitude Sul.

Um comentário:

Anônimo disse...

Uma das melhores matérias que já li na minha vida! Excelente,continue assim.

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