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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Pena de aluguel

Nunca passou pelo meu coração, quando jovem, escrever por encomenda. Como 90% dos aspirantes a escritores, eu imaginava que editores, críticos e leitores se curvariam à excelência da minha prosa. Eu poderia até ter alguns originais recusados. Mas o tempo, acreditava, cuidaria de reparar flagrante injustiça.

Todo aspirante a autor tem suas predileções. Modelos a reverenciar. Jamais pensei em ser um Honoré de Balzac – o das Ilusões Perdidas – a criar por encomenda embaixo de suor e pressão. Queria mais era ser um Gustave Flaubert – o da Madame Bovary – a procurar a palavra perfeita para a frase perfeita dentro do perfeito parágrafo.

Levei tão a sério a influência, que passei dez anos escrevendo um romance bordado. Acordava às cinco da matina, engolia um café e dois cigarros, e dedos no teclado. Primeiro dedos em uma olivetti letterra 22. Depois em um PC com tela de fósforo verde. Nessa época eu acreditava que a forma seguia a forma.

Paralelo à escrita do grande romance, eu era roteirista de vídeo e televisão. Roteiros encomendados que pagavam as minhas contas. Só que eu desprezava o ofício. Não queria escrever o que os clientes queriam que eu escrevesse. Para piorar, roteiros depois de filmados vão para a lata de lixo. Insuportável.

Mas nada como o desenrolar da vida para retificar as distorções da mocidade. Concluído o romance, de escrita barroca e dificílima, colecionei um portfólio de negativas editoriais. Além dos sorrisos constrangidos dos amigos que tentaram ler, mas desistiram nas primeiras páginas. Para não ser injusta, quatro deles chegaram ao final. Minha estreia literária foi uma não estreia. Resumindo em duas palavras: um fracasso.

Tentei novamente com um livro de microcontos, o 64. Ele não tem nada de barroco. É uma escrita direta e curta. Foi publicado primeiro pela Am3artes e depois pela Brasiliense. Novamente não aconteceu nada. O livro ficou invisível. Ao todo, recebi cento e oitenta reais de direitos autorais. Menos do que pago mensalmente pela conta do celular. Também não funcionou como cartão de visita. Ninguém me convidou para escrever em veículo algum por ter lido o 64.

No entanto vocação é teimosia. Não abri mão das palavras, me atirei na redação por encomenda. Deixei que o dono da flauta escolhesse a melodia. Descobri a diferença entre escritora e redatora. A primeira escreve o que quer, a segunda o que o cliente deseja. Que assim fosse.

Fiz de tudo: roteiros, reportagens, perfis, matérias, textos institucional, publicitário, panfletário. Fiz frases para cartões de aniversário, casamento, dia das mães e dos namorados. Redigi o menu de uma doceira que me pagou com uma torta de nozes. Levei calote de alguns clientes. Também senti orgulho de muitos trabalhos.

O fato é que não entrei no seleto clube dos autores literários profissionais. Entrei sim na divertida oficina dos escribas. Esses loucos pela escrita. Não importa se a encomenda é redigir bula de remédio, revista de supermercado, site de autoescola. Importa que você está escrevendo.

Foi então que apareceram os blogs. Esses espaços maravilhosos que permitem que a gente escreva o que a gente é. Permite que a gente experimente com liberdade e gosto. Fora a delícia de soltar a escrita para o grande mundo. Imaginar, como no universo da velha literatura, que há um leitor em Belford Roxo e uma leitora em Rabat.

Tal satisfação não tem preço. Mas também não paga nenhuma conta. Nem a da água. Neste momento em que escrevo aqui para o Nota de Rodapé, me ocorre que a verdadeira paga é ter leitores. Bons leitores que reescrevem em suas mentes o que escrevinho na tela. Leitores que me fazem esquecer que existem contas a vencer.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

14 comentários:

Regina disse...

Fernanda

que delicia o seu texto de hoje. E que orgulho de ter uma amiga que não desistiu das palavras, sejam de encomenda ou não. E que emoção ver você falando de Cá, Camila, gestação que acompanhei em parte. Espero estar entre os quatro recenseados que o leram até o fim (e adoraram). Será porque minha alma é barroca também? beijim Reca

Anônimo disse...

Eu li,alíás onde é mais longínquo : lá ou ali ? aqui ou cá ?
aliás beijos ...

Anônimo disse...

Fernanda, que maravilha o seu texto! Sei de alguns malucos -- inclusive eu -- que se reconhecem totalmente no que você descreve. Acho que a epígrafe seria mesmo nossa velha conhecida: "Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã." É você batucando na Olivetti às cinco da matina. É só um ofício de juntar palavras, mas a gente adora isso. Abraço, Machado.

Marisa Ferraz disse...

Mais gostoso que torta de nozes!

Anônimo disse...

querida fernanda adorei seu fexto muito bom mesmo fazia tempo que eu nao lia coisas desse tipo em que a riqueza das palavras são tão importantes

beijos em seu coração
mirian

Anônimo disse...

Querida Fernanda, seus sempre saborosos escritos fazem bem ao meu coração... Grande beijo da amiga inês

Anônimo disse...

"E se de repente a gente se esquecesse da dor que a gente sente ... então eu te convidaria para uma fantasia do meu violão." Toda semana você me convida; toda semana eu embarco na fantasia do seu violão.
A fantasia se turva quando chegam as contas, mas ela é tão gostosa que depois eu acho um jeito de lidar com elas. Primeiro suas palavras.
Beijo, jsavio

Anônimo disse...

É, Fernanda, mesmo sendo recusada por vários editores e o que mais que o valha, ainda assim, você nos deixa felizes com sua escrita presente e espirituosa nas sua reportagens, contos e nessa 8a maravilha que é a internet.
Por favor, nunca pare de escrever.

Abraços letrados

Anônimo disse...

Confesso que olho com certa desconfiança para o universo dos blogs. Tento evitá-lo. Mas esse texto me mostra que o blog pode ser, sim, um caminho. Muito bom! Parabéns!

Anônimo disse...

Fê,
Tá lindísimo este texto. Também estou entre os leitores recenseados do Cá Camila.
Tenho orgulho por ter sempre acreditado na sua teimosia.

Denise Autran disse...

Palavras... sinto tanto isso, que até me conforta, te ler... muito raro o momento em que não lembro desssa "luta" em ser reconhecido ao menos lido...
As contas não são pagas mas as palavras são ditas e ficam...aqui... em nós...
Ah! Cá, Camila... livro que apreciei do início ao fim...
Beijos da amiga de sempre,
Denise

Anônimo disse...

Belo texto, obrigado.

Alessandro

@tebenas disse...

É, amiga escriba, o prazer da escrita e o prazer de ter bons leitores não tem preço! Assim como para os leitores, a proximidade e o frescor do contato frequente com a excelência e fluidez da sua palavra, com sua tradução da vida, transcende cifras e cifrões.
Vale lembrar, que há maneiras de fazer com que o escrevinhado na telinha, neste mundo paralelo e virtual, pague algumas contas do mundo real. Mas aí já são outros quinhentos (ou mais ;-). O importante mesmo é o prazer de quem escreve, é o prazer de quem lê. O importante mesmo é saborear o curso de suas palavras e logo depois de alcançar o ponto final poder escrever aqui mesmo um salve salve querida escriba! Gracias por nos permitir reescrever em nossas mentes o que escrevinha aqui!

Beto Melo disse...

Este texto não é só comovente: é definitivo, letra por letra, vírgula por vírgula, emoção por emoção.

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