Não deveria causar espanto a notícia de que a presidenta da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, criou um instituto para revisar a história do país. Primeiro porque não é novidade. Segundo porque é necessário para dar a genocidas o lugar que lhes reserva a história: o de genocidas, e nada mais.
A notícia incomodou o jornal aristocrata O Estado de S. Paulo, a ponto de ao Instituto de Revisionismo Histórico Argentino e Iberoamericano dedicar uma reportagem e um editorial acusando a presidenta de querer “reescrever a história argentina”.
Os comandantes do diário paulista podem sofrer de inúmeros defeitos, mas sabem bastante bem a diferença entre “reescrever” e “revisar”. Reescrever ganha o contorno de manipular, mentir, distorcer, escrever sem rigor científico. Revisar, o verbo que figura oficialmente como motivo da nova entidade, é passar a limpo.
É digno de estranhamento que um jornal que se dedica diariamente a reescrever a história do Brasil se espante com a iniciativa argentina. Notório o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem o Estadão tenta constantemente acirrar com Dilma Rousseff, ignorando as seguidas declarações desta em favor daquele.
Exercício
constante
Passar a limpo deveria ser um exercício constante de uma sociedade, como a brasileira, que ora tenta passar a limpo o ocorrido durante a ditadura (1964-85).
Diz o decreto assinado esta semana por Cristina que a instituição terá o papel de “estudiar, investigar y difundir la vida y la obra de personalidades y circunstancias destacadas de nuestra historia que no han recibido el reconocimiento adecuado en un ámbito institucional de carácter académico, acorde con las rigurosas exigencias del saber científico”.
Evidente que não se coloca a mão no fogo por ninguém na política, menos ainda na política argentina. Não seria sensato atribuir à presidenta uma atitude desprovida de interesses, guiada unicamente pelo conhecimento da verdade e pelo resgate da memória.
O Instituto de Revisionismo Histórico não tem, claramente, a intenção de ser o reduto da neutralidade, simplesmente porque não se dá à ingenuidade de supor que possa haver tal elemento na historiografia ou em qualquer atividade humana, sempre guiada por um conjunto de valores intrínsecos que, por si, eliminam a possibilidade de uma visão neutra da realidade.
O decreto, novamente, não deixa dúvidas de que a finalidade da instituição “será el estudio, la ponderación y la enseñanza de la vida y obra de las personalidades de nuestra historia y de la Historia Iberoamericana, que obligan a revisar el lugar y el sentido que les fuera adjudicado por la historia oficial, escrita por los vencedores de las guerras civiles del siglo XIX”.
A presidenta enumera quais personalidades acredita estarem incluídas neste grupo, como Evita Perón e Juan Domingo Perón, José de San Martín e Hipólito Yrigoyen.
Mais que enaltecer o trabalho desta ou daquela figura, o instituto terá utilidade se contribuir para que se revisem os livros de história apresentados em colégios argentinos, ainda capazes de atribuir a Julio Argentino Roca, general e presidente da virada dos séculos XIX e XX, um papel positivo na chamada “conquista da Patagônia”. Q
ue a nota mais valiosa de um país – no caso, a de cem pesos – seja estampada por um genocida que matou 1.300 indígenas e fez 12 mil prisioneiros é algo que diz muito, que fala por si, e que precisa dar lugar a uma nova história.
É bem verdade que é preciso se preocupar com as falsificações da versão oficial. Foi a ladainha repetida ao longo de décadas que permitiu que o litígio com a Inglaterra no caso das Malvinas ocupasse uma reserva de luxo na política externa argentina.
Ao menor sinal de dificuldade, o governo de turno poderia apelar ao conflito com os ingleses ciente de que uma população adestrada durante meio século sobre o assunto lhes apoiaria, e foi isso que levou os militares, em 1982, a empreenderem um combate ensandecido que resultou na morte de argentinos e que lhes deu o tempo necessário para a pilhagem final do Estado.
Bem antes disso, representações cartográficas tendenciosas colocadas em livros escolares foram o mote para um acirramento das posições argentinas e chilenas em torno dos territórios ao Sul, que só não resultaram em guerras de grande gravidade para o continente por conta de negociações pontuais.
Estanislao Zeballos, por três vezes chanceler argentino entre os séculos XIX e XX, valeu-se de mapas fajutos na tentativa de levar ao conflito bélico – o ministro xenófobo e racista também tinha intenção de ocupar militarmente o Brasil, é bom que se lembre.
É destes vencedores que Cristina fala em seu decreto. O Estadão, barão do café, ruralista e aristocrata, vencedor desde o século XIX, tem muito a se arrepiar com a revisão da história. Caso o fizéssemos no Brasil, seria reservado ao jornal o lugar que lhe é de direito.
João Peres, jornalista, colunista do Nota de Rodapé e repórter da Rede Brasil Atual
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.