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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 8 de setembro de 2012

Como uma diva

A primeira vez da gente é mesmo marcante. Durante 29 anos fui fiel aos homens. Somente eles colocavam as mãos. Foram poucos, quatro no máximo. Um tinha bigode, outro era quase anão, sempre mais velhos, conversadores, com histórias que me entretiam num ambiente amigável. O típico local em que me sentia parte do todo, satisfeito mesmo. Me tratavam bem e faziam o serviço por poucos trocados. Sempre foi assim. Era um estilo.

Me afeiçoei ao último, um nordestino das terras próximas do Crato, no Ceará. Seu João, baixo, calado, calça social preta batida e camisa entreaberta que não dava para chamar de branca. Um machão respeitável, pai de oito filhos. Nos encontrávamos de dois em dois meses no mesmo pardieiro em São Paulo.

Nos cumprimentávamos enquanto a abatida televisão de 21 polegadas estava sempre sintonizada no mesmo canal. Às vezes, eu esperava enquanto folheava revistas velhas, jornais de bairro antigos. No fim, amenidades eram ditas e 10 mangos a menos ia eu feliz pra casa. Pensava: “Agora, só daqui a dois meses.” Foi então, sem mais, como num corte seco de um filme de ação, que mudei. E eu estava tenso com aquela história de mudar radicalmente.

Era um sábado bem de tardezinha quando cheguei no lugar no qual até a Camila Pitanga, a atriz Global, vai quando está em terras paulistas. O tema aqui, caro leitor, é o corte de cabelo mais caro da minha vida, num salão respeitável, pasmem, muito próximo ao do Seu João. Aquela sensação do novo me aborrecia, estava eu a trair a causa? Mas vejam, era um presente, e eu não podia recusar. Se você leitor me perguntar o motivo da mudança, logo adianto, o amor quebra mesmo preconceitos (e orçamentos).

O primeiro impacto foi o do luxo. Tinha manobrista, o design da casa era arrojado, decoração modernete pacas, cadeiras bem confortáveis, sofás caprichosos e coloridos com direito a café, água e, dependendo da ocasião, champagne. “O que eu tô fazendo aqui?”, lamentei logo ao entrar e ver os olhares curiosos de mulheres postas em cadeiras com outras segurando seus pés, mãos e cabelos. O som, nem de longe, lembrava o barulho da tevê meio sem sintonia dos buracos onde sempre me enfiei. Era música de balada, dessas que te deixam ligadão, com vontade de pular sem motivo aparente.

No entanto, não havia caos, e sim um burburinho desconhecido para, julgo eu, a maioria dos homens. O que será que pensavam de mim? Ruborizado (meio aterrorizado, vai!) caí nas mãos – ó, infiel – de uma moça de estatura baixa e igualmente descolada. Em suas mãos uma perigosa navalha. “Mas onde raios foi parar a tesourinha véia de guerra?”, imaginei. A moça (especialista também – atentem ao nome – em design de sobrancelhas) veio logo mexer no meu cabelo, mandou a assistente lavar com esse e aquele produto megahipercool.

Explicou-me a assistente que cabelo liso se corta com navalha. Foram uns três ou quatro tipos de cremes antes da toalha e do secador. Já estava cansado, quando, finalmente, fui para a cadeirinha, como um bom menino envergonhado, esperar a minha vez enquanto observava. “Nooossaaaa, como você está linda com esse cabelo…”, disse uma. “Esse esmalte fica bom em mim?”, perguntou outra. Eram muitas manicures com suas munições coloridas de marcas variadas. E ninguém para falar, sei lá, de futebol comigo? De novela, quiçá?

Desperto da lamentação com a pergunta. “Como você quer o corte?”. Fico em silêncio. Nem eu sei. A minha vaidade capilar sempre foi dizer aos homens da barbearia: “tira o excesso e corta um pouco a franja” ou “Passa a máquina três do lado e encurta”. Direto e reto, sem rodeios. Mas ali era território desconhecido. Disse a ela “invente um corte”. Entre mil sugestões a cena se desenrolou sem eu saber o que acatei. Minuciosamente, concentradíssima, a navalha fazia sua parte e os pedaços de cabelo iam embora.

“Você vai ficar careca”, ela comentou despretensiosamente. "Como pode me dizer algo tão duro sem nem me conhecer direito?", pensei e sorri amarelo – emputecido, é claro. O espelhinho ao fim do corte – aquele que colocam atrás de você – salvou minha recordação do Seu João. Ele não dizia nada e eu só acenava que sim, pagava e ia embora. Na minha primeira vez, tive de esperar a esposa, responsável por toda essa incursão radical na capilocultora. Seu João, me perdoe, mas hoje, como uma diva, meu luxo bimestral é não precisar mais pentear o cabelo que ainda me resta quando acordo. Artimanhas da navalha.

Thiago Domenici
, jornalista, escreveu este texto originalmente para o blog TodasNós em 2011. Como seu colega rodapédiano, Tomas Chiaverini, que escreveu sobre o tema recentemente  - Emancipação Capilar - resolveu também compartilhar, sem pseudônimo, o texto em questão.

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