por Tomás Chiaverini ilustração Victor Zalma*
Durante anos guardei minhas unhas. Não lembro exatamente como tive a ideia. Mas um dia, depois de aparar pés e mãos não joguei tudo fora como faria um humano mentalmente são. Em vez disso, guardei as pequeninas meias-luas de queratina numa caixinha de tic-tac sabor laranja. No começo não havia um motivo específico. Talvez tenha sido preguiça de ir até o lixo, talvez a caixinha estivesse ali, ao alcance, sobre o criado-mudo.
De qualquer forma, isso logo se tornou um hábito. E, com o tempo, passou a me proporcionar um discreto prazer. Pensava naquela música do Chico. No futuro distante, um escafandrista revira uma casa submersa e encontra resquícios de um amor do passado. Pensava que um dia um arqueólogo viria revirar meu criado-mudo, talvez fossilizado após uma hecatombe nuclear ou coisa que o valha, e encontraria ali minha coleção de unhas, acumuladas durante uma vida.
Com isso os cientistas do futuro concluiriam que todos os homens da nossa época guardavam suas unhas. E a partir daí criariam teorias sobre nossa cultura e religião. Uma civilização altamente materialista que não se desfazia de nada, nem mesmo de partes dispensáveis como unhas cortadas. Toda vez que sacava a tesourinha do canivete, era tomado por uma mitomania jocosa, imaginava a confusão histórica que poderia causar, e me ria por dentro.
Cheguei a levar as caixinhas de plástico laranja em viagens pra não desperdiçar nenhuma lasquinha. Era um trabalho meticuloso manter a coleção. Porque, apesar de cortar as unhas das mãos semanalmente e dos pés a cada dez dias, mais ou menos, o volume total era surpreendentemente reduzido.
Mas me divertia. Juntava as unhas com cuidado, olhava as caixinhas contra a luz e imaginava os cientistas do futuro intrigados. O que pensariam quando encontrassem uma unha inteira, que perdi depois de fechar a porta do meu velho Uninho no dedo médio? Talvez um ritual de passagem, como o daqueles índios que enfiam a mão em luvas forradas de formiga.
Foi assim durante anos, até que um dia, arrumando a segunda gaveta do criado-mudo, fui conferir as primeiras unidades fechadas da coleção. Pareciam vazias demais. Olhei contra a luz e lá estava. No fundo das caixinhas, uma pequena quantidade de pó esbranquiçado. Olhei as outras e nelas também havia um acúmulo de grãozinhos minúsculos, e todas estavam mais vazias do que antes. Não restava dúvida. Minhas unhas estavam virando pó, misteriosamente desintegrando-se sozinhas. Eu pensando no futuro, fazendo planos para daqui a duas, três, quatro décadas, e minhas unhas ali, virando pó.
Meus sonhos brincalhões de imortalidade, alterar a história com a ponta dos dedos, literalmente se desfaziam a olhos vistos. E ironicamente me lembravam de nossa dolorosa condição mortal. Do pó ao pó, sussurravam minhas unhazinhas cortadas. Depois disso nunca mais guardei unha nenhuma. Dos dedos direto pro lixo do banheiro e daí pra algum aterro sanitário. E de preferência sem pensar muito no assunto.
* * * * *
*Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração de Victor Zalma, especial para o texto
Um comentário:
Você não deve desistir... suas unhas devem ter sido atacadas por algum fungo. Sugiro que vc as coloque no formol...
Agora, imagine se após a grande hecatombe, a única coisa que sobrou de nossa civilização seja sua coleção de unhas...
Os seres do futuro talvez achem que... que... hummm!!!
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