por Cidinha da Silva
A chamada de abertura da entrevista do sociólogo italiano Domenico de Masi ao semanário Época, afirma, de maneira pretensamente ingênua, “que os brasileiros, de um tempo para cá, passaram a ver sociologia em tudo, até no rolezinho dos adolescentes”.
O texto prossegue e apresenta De Masi como um profundo conhecedor do Brasil, que mergulhou nas obras de autores fundamentais para a compreensão do país, tais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro, embora destes três, o autor mencione apenas Darcy Ribeiro como destaque na formação de seu pensamento sobre o país. Outro intelectual brasileiro que merece citação particular do italiano é Oscar Niemayer. Segundo De Masi, “ambos deram contribuição criativa inestimável para impor ao mundo a excelência original do modelo brasileiro”.
É provável que ao longo do livro “O futuro chegou – modelos de vida para uma sociedade desorientada”, De Masi mencione Freyre e Buarque de Holanda como leituras importantes a informar sua análise. Um tanto conservadora, pois ele parece não ter chegado sequer à geração de sociólogos uspianos da década de 50, responsável por atualizar os estudos sobre relações raciais no Brasil, haja vista os clichês sobre a cordialidade do brasileiro propagados por De Masi, dos quais trataremos um pouco à frente. Mas, é notório que o jornalista quis enfatizar os autores dos nos 30, com os quais deve ser afinado.
Ao descrever a riqueza do Brasil para construir um novo modo de vida, De Masi faz afirmações controversas, no mínimo. Diz ele: “penso na copiosa mistura de raças aliada ao baixo índice de racismo, no sincretismo cultural, no amor pelo corpo, na sensualidade, na cordialidade, na musicalidade, na propensão do brasileiro a assimilar as contribuições dos estrangeiros, na hospitalidade, na alegria, na espontaneidade, na abertura ao novo e ao diferente, na tendência a encarar a realidade com um pensamento positivo, na capacidade de considerar fluidas as fronteiras entre o sagrado e o profano, o formal e o informal, o público e o privado, o emocional e o racional.”
Minha dúvida é se realmente De Masi caracteriza o Brasil em que milhões de brasileiros negros e pobres vivem ou faz uma abstração sociológica com o fim generalista de construir um modelo interpretativo, a partir de teorias e teóricos que optaram por não aprofundar as desigualdades que aqui imperam e suas raízes.
Comecemos pela copiosa mistura de raças... Ela tem servido para nos apresentar ao mundo como nação do futuro, multiétnica, misturada, mas, no frigir dos ovos, a tal mistura produz ganhos reais ou mesmo simbólicos para quem está na base da pirâmide socioeconômica? Essas pessoas são aquelas fenoticamente mais próximas dos ingredientes africanos e indígenas no caldeirão tupiniquim das raças. Cabe perguntar, então, a quem serve e para que serve a “copiosa mistura de raças”.
A propalada sensualidade brasileira também é uma faca de muitos gumes. Por exemplo, é certo que não vemos nas ruas dos EUA ou de países da Europa, beijos cinematográficos ou mesmo o carinho ostensivo vistos nas ruas do Brasil à luz do sol, entre pessoas comuns. E parece que gostamos disso ou consideramos coisa normal, desde que, seja entre casais heterossexuais considerados belos e padrão. Se for um casal de negros, uma parcela significativa da população considerará o ato sensual e carinhoso como atentado ao pudor, porque o stablisment animaliza as expressões de amor e a sensualidade quando vêm dos negros.
Se forem gays, lésbicas ou transexuais, os casais correrão o risco de ser assassinados enquanto fecham os olhos. Se forem pessoas LGBT negras, além do risco de vida que todos os casais homoafetivos correm ao vivenciar seu afeto nas ruas, serão seguramente alvos de piadas racistas que também as matarão, de maneira lenta e gradual. Dessa forma, me pergunto sobre qual sensualidade maravilhosa ou sobre a sensualidade de quais brasileiros De Masi se gaba? A quem essa generalização contempla e quem fica fora dela?
Outra suposta característica positiva do país é a abertura ao novo e ao diferente! Abertura para quem? De qual diferente falamos? Quem tem direito pleno ao gozo de identidade sólida e alteridade respeitada no Brasil?
Como são tratados, por exemplo, os jogadores de futebol negro-brasileiros que, depois de poucos meses jogando na Europa e na Ex-URSS voltam cheios de amor próprio e identidade, com os cabelos crespos grandes, eriçados, trançados, com dreads? Quem os deixa ser diferentes, na verdade, quem os deixa ser parecidos com os seus que reinam altivos pelo mundo ou mesmo aqueles sobreviventes que conseguem escapar do achatamento dos crespos e da mesmice imposta à estética capilar dos homens negros brasileiros? Qual é o programa esportivo que os deixa se diferenciar da média dos boleiros negros em paz? Se a maioria da população representada por esses negros em ascensão não tem direito sequer a usar o penteado desejado sem que se torne alvo de piadas racistas, das mais simplórias às sofisticadas, de que país aberto ao novo e ao diferente De Masi trata?
Considerar uma vantagem a vigência de fronteiras fluidas entre o emocional e o racional, o formal e o informal, o sagrado e o profano, vá lá, são questões subjetivas, mas a fluidez entre o público e o privado não creio que seja uma coisa boa, não.
A urbe mal administrada por gestores que consideram a cidade um bem privado, expulsa as pessoas comuns do centro, evita as aglomerações de gente em shows de música abertos, sob justificativas incompreensíveis de proteção ao patrimônio público. Impede a freqüência aos espaços públicos como praças, ruas e avenidas em dias e horários de pouco movimento. Cerceia o direito de ir e vir das pessoas e, quando permite o movimento, cerca-as mesmo, com cercos de ferro, ora móveis, ora fixos, de um modo geral fornecidos por empresas de políticos e/ou parentes ou coligados deles, aos quais se exime de licitação.
Em Belo Horizonte, teve início em 2010 o movimento Praia da Estação, uma reação a um decreto da Prefeitura Municipal que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais antigos da capital mineira. A moçada traja roupas de banho, óculos de sol, protetor solar e em finais de semana previamente acordados, ocupa a praça, se refresca no chafariz, bate-papo e resiste à lei autoritária.
Em búzios, praias públicas, como deveriam ser todas as praias, são quintais privatizados das mansões dos ricaços. Ai do cidadão comum que pisar naquelas areias, arrisca-se a levar tiros dos fuzis da polícia privada (muitas vezes composta por policiais militares) que toma conta da área pública privatizada.
Por fim, a inexistência de fronteiras entre o público e o privado impulsiona a corrupção, faz com que a máquina pública seja regida por princípios de economia doméstica e/ou práticas de beneficiamento de empresas privadas.
Como é possível a um sociólogo estrangeiro concluir que o Brasil tem “baixo índice de racismo” quando a imprensa sensacionalista esfrega na cara dele a crescente exposição de homens negros ao suplício público – acorrentados a postes por correntes de metal, cordas e trancas de bicicleta, torturados e amarrados nus com os braços presos para trás, rosto e genitais colados ao asfalto escaldante -, punidos exemplarmente por delitos ou supostos delitos, como forma de recuperar na memória de todos os negros contemporâneos, a escravidão a que seus ancestrais foram submetidos e o que pode acontecer a eles, que assistem às cenas de tortura solidários e enojados, caso não rezem direitinho pela cartilha dos brancos?
Não é aceitável que alguém pleno de capacidades mentais argumente que o Brasil é um país de “baixo índice de racismo”? Uma afirmação como esta me leva a duvidar da seriedade do livro e do pesquisador.
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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.
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