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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Onde foi que erramos?

por Celso Vicenzi*

O filme “Meia-Noite em Paris”, de Woody Allen, de maneira muito original questiona: existe época melhor para se viver? Muitos de nós gostariam não só de ter uma vida diferente como de ter vivido em outra época. Difícil dizer se o passado já foi melhor ou se o futuro promete dias mais felizes.

Mas, na música brasileira, arrisco dizer que já vivemos dias – e noites – melhores. Onde foram parar versos imortais como os de Carinhoso, de Pixinguinha (“meu coração, não sei por quê / bate feliz quando te vê / e os meus olhos ficam sorrindo / e pelas ruas vão te seguindo / mas mesmo assim, foges de mim”)? Ou de As rosas não falam, de Cartola (“queixo-me às rosas / mas que bobagem / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai”)? E o que dizer de Construção (Chico Buarque), Travessia (Milton Nascimento e Fernando Brant), Tropicália (Caetano Veloso), Eu sei que vou te amar (Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes)?

Nossa música caipira, antes de entrar para a escola do show business e se graduar em sertaneja universitária, também produziu versos antológicos, como No rancho fundo, de Ary Barroso e Lamartine Babo (“No rancho fundo / bem pra lá do fim do mundo / onde a dor e a saudade /contam coisas da cidade...”) ou Romaria, de Renato Teixeira (“O meu pai foi peão /minha mãe solidão / meus irmãos perderam-se na vida / à custa de aventuras / Descasei, joguei /investi, desisti / se há sorte / eu não sei, nunca vi”). Isso para não falar de Asa Branca, Luar do Sertão, Menino da Porteira, Tristeza do Jeca e tantas outras.

Não é por nada, não, mas comparem com Lepo Lepo, de Márcio Victor: “Eu não tenho carro / não tenho teto / e se ficar comigo é porque gosta /do meu / rá rá rá rá rá rá rá /Lepo Lepo / é tão gostoso quanto eu / rá rá rá rá rá rá rá / Lepo Lepo”. Veio para substituir outra que não parava de tocar: Ai se eu te pego, de Sharon Acioly e Antônio Digs (“Nossa, nossa / assim você me mata / ai se eu te pego, ai, ai, se eu te pego”). Quase todas apelam para uma sexualidade fast food, com letras medíocres. Se você ainda não se convenceu da distância poética que separa os exemplos citados, concluo com a primorosa letra de Eu quero tchu, eu quero tcha, de Shylton Fernandes: “Eu quero tchu, eu quero tcha / eu quero tchu tcha tcha tchu tchu tcha / Tchu tcha tcha tchu tchu tcha”. E tem ainda o “vai rolar bundalelê”, “rala o tchan”, “faz uó”, “melô do pirulito”, grosserias para todos os gostos (duvidosos).

Pensando bem, não seria má ideia poder escolher a melhor época para se viver.

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Celso Vicenzi, jornalista,. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres. Esse texto foi publicado originalmente no Correio Lageano.

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