Essa vida de cronista é feita de um material curioso, pronto para ser preenchido, dobrado, apagado, espichado, encurtado, com um quê de imprevisível. Você começa a pensar num tema, passa dias matutando sobre como vai desenvolvê-lo, alinhava algumas frases e aí um outro assunto pula na frente e começa a te atormentar e não te larga, até que você desiste do que estava escrevendo e o acolhe. Como os sobrinhos-netos fizeram várias vezes, subindo para o meu colo enquanto eu tentava escrever, na casa deles, lá em Steinhausen. Como resistir? Eles subiam, bisbilhotavam um pouco, mexiam no computador e nas canetas e depois iam procurar uma atração mais interessante que os cacarecos da mesa da tia. Deliciosos.
Remédios que curam provocam doenças. Enquanto controlam ataques epilépticos ou batimentos cardíacos, enquanto compensam a insuficiência de insulina ou impedem a proliferação de células cancerosas, ou mesmo quando se dedicam a debelar uma reles dor de cabeça, enfraquecem os dentes, liquidam abundantes cabeleiras, causam gastrite, taquicardia, insônia e tantas outras coisas.
O brilhantismo daquela pessoa que acabou de entrar na sua equipe de trabalho, atraindo tanta admiração e dando a sensação de ter sido uma ótima escolha, será uma bela encrenca em alguns meses, quando ela insistir em brilhar de qualquer jeito, mesmo depois de constatada sua dificuldade para lidar com tarefas concretas e coletivas, interagir e compartilhar. A facilidade com que aquele amigo te diverte com suas tiradas geniais e seu olho inclemente se tornará um peso difícil de manejar quando a precisão de serenidade se impuser, ou quando o silêncio e o recolhimento forem vitais.
O que tanto te encantou e atraiu no seu amor eventualmente poderá ser motivo de amargura, distanciamento e até mesmo rompimento. Aquilo que te seduziu numa ideologia política ou num estilo de vida, te acenando com a possibilidade de viver num mundo mais compatível com suas crenças e expectativas, em algum momento se mostrará incoerente, vazio ou até repulsivo.
Por que? Porque somos imprevisíveis, equivocados, imperfeitos, mutantes, desarrumáveis. Porque as coisas que nos cercam e fazem a nossa vida também são. Ainda bem.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.
3 comentários:
Estou aqui rindo: a essa altura da minha vida já experimentei a maioria desses "remédios"! Bom vê-los descritos assim, e tão bem, por outra pessoa! Beijão, FF
É isso, Júnia Puglia! Todo remédio tem seu DEFEITO colateral. Rsrsrsrs.
Obrigada pela reflexão de hoje. Reconhecer a finitude e os limites é um grande desafio. Pressupõe assumir a radicalidade do que se é! Aí afloram todos os defeitos, inclusive os colaterais. Bj . Olga.
Sim, somos imprevisíveis, mutantes, equivocados . Quantas vezes no dia-a-dia já senti essa mutação! Sábio mesmo era Lavoisier, com seu conceito de
"Na natureza nada se cria, nada se perde ; tudo se transforma",ou mais recentemente, com Fernando Pessoa :" Tudo vale a pena se a alma não for pequena".
Que as transformações e seus remédios, seus efeitos colaterais e quejandos nos levem em direção ao alvo.
Bjs da Mummy Dircim
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