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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Inventos


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Esta crônica é sobre “Ela”, filme dirigido por Spike Jonze, que recentemente concorreu ao Oscar. A quem pretende assistir e não gosta de saber detalhes do que vai ver (como eu), recomendo parar a leitura por aqui.

O escritor Theodore tem uns quarenta anos e vive em Los Angeles, num futuro não muito distante, no qual a tecnologia digital já caminhou umas duas ou três décadas além de como a conhecemos hoje. Uma das características dessa evolução é o fato de que todos os comandos dados a um equipamento digital são feitos pela voz. Já não há teclados, nem ratos, nem mesmo telas de toque, pois os equipamentos também falam com os usuários.

Theodore faz um trabalho no mínimo curioso: redige, numa empresa que se dedica a produzir cartas “manuscritas” sob encomenda. Com base nos dados fornecidos pelos clientes, profissionais elaboram os textos, que são ditados ao computador e impressos em papel com caligrafia humana. Uma espécie de resgate nostálgico da antiga forma de comunicação escrita por extenso, que levava e trazia emoção pra todo lado e demorava pra chegar.

Nosso redator é um sujeito solitário, amargurado com o fim do seu casamento, ao ponto de se recusar a formalizar o divórcio. As cartas dos clientes são uma bela maneira de exercitar sua sensibilidade sem interação – algo que nos nossos dias já vem sendo adotado por muita gente que, graças às redes sociais, jogos em realidade virtual e outros recursos tecnológicos, elimina o incômodo ou as dificuldades de conversar e se relacionar com pessoas de carne, ossos e neurônios.

Movido por um anúncio publicitário, ele adquire um novo sistema operacional para o seu computador, um produto revolucionário, apresentado como intuitivo, que se amoldaria a cada usuário, como se se tornasse, mais que personalizado, individual. A partir do momento em que Theodore inicia a instalação, o sistema se apresenta como Samantha, uma voz cheia de brilho e cor, que já chega com uma conversa fácil, sensível e espirituosa. Em duas palavras, irresistivelmente sedutora. Acontece o inevitável: em pouco tempo, o solitário carente se apaixona por Samantha, que entra no clima e corresponde.

Ela não podia ser mais perfeita: disponível em tempo integral, suave, divertida, encantadora, sem qualquer sinal de insatisfação, tédio, mau hálito, TPM, dor de cabeça, mau humor, cansaço ou cobranças de qualquer espécie. Só lhe falta um corpo, mas nem tanto assim. A incondicionalidade compensa esta limitação, com vantagens. Theodore está nas nuvens, tanto que toma a iniciativa de propor à ex-mulher a assinatura imediata dos papéis do divórcio, como um atestado da sua recuperação emocional.

Essa perfeição toda vai às mil maravilhas, mas no caminho da paixão virtual há uma atualização a ser baixada, o que faz Samantha desaparecer de repente, causando em Theodore um pânico poucas vezes visto em telas românticas. Quando volta, devidamente atualizada, e tem que responder às perguntas atropeladas do amado, este se dá conta de que sua “Samantha” está vivendo romances semelhantes, intuitivos e personalizados, com centenas de outros usuários. Mas ela garante que com ele é diferente, é verdadeiro etc. etc. Pouco tempo depois, uma nova versão do sistema operacional a sepulta para sempre no mesmo vazio que algum dia acolheu os MS-DOS da vida.

Pobre Theodore. Sua dor é infinita. Como abrir mão da namorada perfeita, que nunca iniciou uma DR nem reclamou de nada? Como lidar com a constatação de que a compartilhava com um monte de gente? Mais do que isto, como aceitar que ela de fato não existia, se a paixão que ele sentia era verdadeira, profunda e correspondida? E a paixão não consiste precisamente em inventar a pessoa amada?

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parei. Rsrsrsrs
Beijo!
Carol Mendes
(volto nela semana que vem!)

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