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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 29 de abril de 2014

Uísque de cobra



por Carlos Conte

– Aqui está, Charlene, seu velho cão! Presentinho do Laos... – e me estendeu uma garrafinha cheia de um líquido amarelo, meio turvo, através do qual se via, envolta em folhagens, uma cobra. Como a cabecinha dela não estava submersa, cheguei a pensar, com certo nojo, que poderia estar podre.

Combinamos de beber aquilo numa ocasião especial. Não é todo dia que se ganha um uísque de cobra, ainda mais vindo de tão longe, e por isso decidimos que a rolha só seria removida numa data importante. A princípio não definimos quando seria, mas ficou acertado, com ares de seriedade, que para beber aquele destilado exótico armaríamos uma espécie de ritual.

Não demorou, surgiram voluntários querendo participar. Talvez fosse o fascínio por aquele réptil mergulhado em aguardente, um sabor ainda não experimentado, a possibilidade de uma experiência mística, não sei precisar ao certo por que tanta gente se interessou por aquele uísque... A propósito: uma cobrinha bem sem vergonha, dessas que de vez em quando a gente encontra na beira de um córrego ou terreno baldio, dois centímetros de espessura, toda verde, com detalhes em vermelho e amarelo, e a língua esticada pra fora, os olhos esbugalhados, como se quisesse lembrar aos vivos beberrões que na origem do prazer etílico havia uma triste história de perseguição, sofrimento e morte.

Mas isso, na verdade, só alimentava nosso desejo. Saber que aquele animal havia sido assassinado para que pudéssemos desfrutar do seu sabor fazia aumentar a nossa responsabilidade: que sua morte não tenha sido em vão! Façamos jus ao sacrifício dessa cobra!

Tudo bem que não tinha a nobreza de uma naja, sucuri, jiboia, cascavel, mas se tratava, apesar de tudo, de uma cobra, naturalmente ardilosa, dotada de estratégias caçadoras que fazem inveja ao mais hábil caçador da espécie humana. Por menor que seja, uma cobra sempre impõe respeito. Quantas histórias de expedicionários que não voltaram para casa porque o veneno foi mais rápido, espalhando-se implacável pela corrente sanguínea, provocando uma morte lenta e terrivelmente dolorosa... Aquela, porém, não parecia ser venenosa. Com esforço, Migue e eu recordamos as aulas da biologia do colégio e, analisando com atenção aquele exemplar conservado em álcool, chegamos à conclusão de que uma cobra, para que possa ser considerada venenosa, tem que ter a cabeça em formato triangular e a cauda mais fina que o restante do corpo. O Migue também me explicou que cobra venenosa tem um orifício a mais além das narinas e dos olhos, com um nome esquisito do qual agora não me recordo (como várias outras coisas da época da escola, essa informação deve ter ido parar em algum arquivo morto da minha memória).

Mas não fiquei menos tenso por causa disso. Mesmo se um zoólogo me dissesse que não se tratava de indivíduo peçonhento, sobraria uma pontinha de desconfiança. Não tem jeito. Os japoneses que vão ao restaurante para comer aquele baiacu venenoso, que só pode ser manuseado e limpo por um sushiman licenciado, pagam caro justamente porque têm consciência do risco que estão correndo. Sabem que o sushiman não vai errar, que ele foi treinado para detectar e extirpar a bolsa de veneno das entranhas do peixe, mas ainda assim fica alguma dúvida, e é por causa desse resíduo de desconfiança que o baiacu mortal é tão famoso.

Ficou decidido: 1º de janeiro de 2014. O dia da cobra. O renascimento selvagem das nossas almas ressacadas. O dia em que deglutiríamos o espírito da serpente. Pode parecer história de pescador o que vou contar agora, mas garanto que foi exatamente assim:

Estávamos na casa de um pescador, o Toninho, na Enseada da Baleia, Ilha do Cardoso. Chovia, como é comum no primeiro dia do ano. Alguns dormiam, outros aproveitavam os últimos momentos de luz do gerador para ler, jogar cartas, arrumar o quarto, antes que a escuridão tomasse conta de tudo. Lembro que estava coçando na rede quando o Migue veio até mim e anunciou que aquela era a hora. O Dani estava lendo Manoel de Barros e passou. A Iza, esmaltando as unhas, passou. O Galo passou. Mumu também. Só o Cabelo quis participar. Estávamos reunidos na cozinha mal iluminada, e os pingos de chuva grossa que caíam esparsos na telha de Brasilit davam o ritmo.

Algo dizia que aquele momento era solene, mas já não estava tão convicto disso. É que alguns dias atrás, numa de suas histórias sobre as peregrinações pelo leste asiático, o Migue contou que essas cobrinhas dão que nem rato no Laos, Vietnã, Camboja, e não tem nada de especial topar uma dessas pelo caminho. Andando de moto pelas estradas vicinais do Laos, é comum vê-las saindo do meio do mato e cruzando o asfalto. Até na cidade as crianças pegam essas cobrinhas pelo pescoço brincando no quintal. Faz parte do dia a dia dessas pessoas encontrar cobras. E confesso que esse papo me tirou um pouco do tesão pelo ritual.

Além disso, uma sensação vaga me dizia que aquele uísque era meio “fake”, coisa pra inglês ver, pra se trocar por um punhado de dólares e, no fim, decorar a estante da casa de algum gringo metido a exótico. Sem dúvida, a garrafa era bonita: a cobra envolvida em plantas de arroz, mergulhada no uísque, daria um ótimo bibelô. Mas a bebida, pensei, não devia ser nada de mais... Esperava que fosse forte, com elevada graduação alcoólica, mas isso independente da cobra, que ali cumpria função de mero ornamento. Em outras palavras: não acreditava que estava prestes a beber o corpo de uma cobra morta.

Lavamos três copos e nos sentamos em volta da mesa. Migue, como mestre cerimonial, abriu a garrafa. Não foi fácil remover a rolha. Estava cravada no gargalo com tanta pressão que chegamos a cogitar usar um facão para arrancá-la, mas esse procedimento pouco digno felizmente não foi necessário porque o Migue meteu a garrafinha no meio das coxas e puxou a rolha com tanta força que o líquido quase foi pro chão. O estampido foi alto. Um “ploc” de verdade que nos causou boa impressão, sobretudo por estarmos no primeiro dia do ano. Depois do “ploc”, um cheiro forte que eu nunca tinha sentido. Subiu com extrema velocidade, preenchendo em poucos segundos o ambiente. Um misto de peixaria com álcool de cereais, uma coisa terrível, e não tive como não ficar assustado com aquela primeira manifestação da cobra, sua carta de apresentação, que imediatamente provocou ânsias no Cabelo, historicamente fraco do estômago.

Recuperados do primeiro golpe, demos as mãos, os três, fechamos os olhos e pensamos em alguma coisa. Não tínhamos preparado nada. Fiz mentalmente uma oração, pedindo um ano bom ou qualquer coisa do gênero, mas o cheiro da cobra era tão violento que minhas preces foram confusas, como um pesadelo. Um pesadelo oriental, pensei, como os sonhos torturantes do comedor de ópio Thomas De Quincey.

Ninguém estava preparado. Senti medo. Medo de passar mal, de tomar veneno e morrer naquele casebre litorâneo em pleno 1º de janeiro, medo de nem começar o ano. Os copos foram servidos até a metade. Acho que foi o Galo que começou a dedilhar o violão dentro do quarto. Havia muitos resíduos sólidos boiando no líquido, conferindo-lhe aspecto sujo, como as águas do canal do mangue que passa atrás do casebre. Matéria orgânica de cobra, pensei. Aquilo não era nada “fake”. E assim que o Migue deu o sinal, viramos, todos juntos, até o fim, a dose mais incrível e asquerosa que eu já tomei na vida, uma mistura de carne podre com formol, e nesse momento o gerador parou de funcionar, a escuridão tomou conta de toda a ilha, alguém tossiu, a cobra, enfim, estava dentro de todos nós.

Acendemos velas. Tinha sobrado meia garrafa. A Iza, preocupada, disse que não precisávamos provar mais nada com aquilo e que era melhor jogar o resto fora. Mas ninguém atendeu aos seus apelos. Servimos mais uma dose para cada, o Cabelo segurou o vômito, e mandamos pra dentro a dose final.

Depois disso, o que posso dizer? Levantei-me zonzo. Apenas duas doses e estava completamente dominado pela embriaguez. Não conheço bebida mais forte. Fui em direção ao quarto buscar a escova de dente (afinal, não poderia dançar forró com aquele bafo de cobra morta), mas puxei a porta de madeira com tanta força que, não me perguntem como, as duas dobradiças se estraçalharam e a porta veio pra cima de mim como um poste ou um tronco cortado – “Madeira!” – e eu tive que me virar para apará-la com as duas mãos, evitando que ela caísse em cima dos meus pés.

Perguntem ao Migue, ao Cabelo, a quem estava lá. Perguntem à Iza, que ficou boquiaberta.

Dia seguinte, acordamos bem, sem ressaca. Tive de dar explicações ao Toninho, dono da casa, pescador há mais de 40 anos, de como aquela porta tinha sido arrancada da parede. Falei a verdade: “Foi a pinga de cobra, Toninho...”. Mas duvido que ele tenha acreditado na minha história.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

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