Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.
(Episódio 9)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Ela caiu ao tentar cobrir um ponto no Aterro do Flamengo. Tudo veloz. Quatro tiras a cercaram e um deles estourou um tapa no seu rosto. É evidente que não falaram perdeu, perdeu, pois isso é expressão dos tempos de hoje. Talvez tenham dito: dançou, dançou. Ou, o mais provável, não disseram nada.
Levaram-na para uma das tantas salas de interrogatório, dessas que tinham como mobiliário: cadeira-do-dragão, pau-de-arara, tanque de afogamento. Desceram o pau. Fizeram perguntas. E o aparelho? Quem é o chefe? Onde se escondem fulano, sicrana, beltrano? Qual o endereço da gráfica?
A moça falou? Não falou? Tanto faz. O fato é que após a prisão no Aterro, não se soube mais dela. Ela não foi vista, nem subindo nem descendo, as ladeiras de Santa Teresa. Não foi vista na praia Adão e Eva em Niterói. Não foi vista tomando chope no Amarelinho da Cinelândia. Não foi vista na primeira passeata feminista. Não foi vista comendo hot-dog no Bob´s do centro do Rio.
Escafederam com ela. Nenhuma pista, nenhum osso, nenhuma cinza. Mas ele a reteve na memória. Não. Isso é pouco. Por décadas, ele usou linha e agulha para bordar as recordações. Ela rindo. Ela dormindo. Ela chorando. Ela entrando com ele no mar num réveillon em Búzios. Ele chamava essas imagens de Arquivo da Amada.
Arquivo afetivo, é claro. Nada a ver com o arquivo do Dops, no qual constava, em linguagem burocrática-policial, a mentira de que ela havia fugido e posteriormente sido vitimada pelos próprios companheiros da organização. Era bem assim que os agentes da repressão se esquivavam de qualquer indagação.
Como um devoto, uma vez ao mês, ele visitou o Aterro do Flamengo. No começo, havia choro e emoção em profusão. Por anos, ele vivenciou o luto. Até as florezinhas e as borboletas pareciam lastimar a ausência da moça. Depois, o sentimento se tornou mais fluido, menos explicável, apesar de persistir doloroso.
Por muitos domingos, ele se deitava na grama e soltava no gravador cassete e mais tarde no walkman a versão do No Woman, No Cry, gravada por Gilberto Gil: Amigos presos, Amigos sumindo assim, Prá nunca mais. A letra era lâmina afiada rasgando seu corpo. Mas de maneira estranha, ou não, ele sentia prazer em curtir essa canção.
Depois houve a época em que ele se ligou na guitarra de Jimi Hendrix, o imenso. Paixão tardia, mas redonda. Ele até se lembrava, achando graça, que a amada havia apoiado, no final dos 1960, uma passeata contra as guitarras elétricas. Imposição de gringo, ela dizia. Mas ele passara a adorar o som de Jimi. A cara de Jimi. Quando adotou o filho, na época com cinco meses, pôs o nome de Jimi.
Afinal.
Hoje ele tem rareado as excursões ao Aterro do Flamengo. Está custoso caminhar. Doem os quadris e principalmente os joelhos. Mas seu coração continua batendo por ela. A desaparecida. Volta em meia ele assobia: Não, não chore mais. Menina, não chore assim. Hê! Hê!
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