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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Balcão, bebiba, barra, Biro

por Carlos Conte*

O bar do Biro é o melhor que eu conheço. Baiano albino, o Biro tem esse apelido por causa do ex-volante corintiano dos anos 80, o Biro-Biro (que o presidente Mateus certa vez chamou de Lero-Lero...). O Biro me lembra um personagem sertanejo da Rachel de Queiroz chamado José Alexandre, “caboclo hercúleo” que vivia isolado numa fazendinha no Ceará e que pelo fato de falar muito pouco sua voz era sempre rouca, “como a de um bicho que aprendesse a falar”. O Biro também não é de falar muito e está sempre rouco. Algumas pessoas são roucas por natureza e acho que esse é o caso do Biro. Por isso, pra ser escutado no meio do barulho do boteco, ele é obrigado a forçar a voz: “vai uma seLEta?”, ele pergunta, com ênfase na tônica, como se levasse um susto no meio da frase.

Crônica tem um quê de conversa de bar. E tem bares que merecem uma crônica. Já escrevi sobre o Silveirinha, poderia escrever sobre o Valadares, o Biu, o bar do Paulo, o bar do finado Vavá... Esses são os meus bares. Meus bares! Com pronome possessivo e tudo. Desses todos, porém, o Biro é o meu predileto, pois no quesito mais importante que existe quando se julga um bar, o Biro vence.

Variedade de cervejas? Sem dúvida esse quesito é importante, mas o Sagarana não é o meu bar preferido, muito menos o Frangó lá da Freguesia. Petiscos? Claro, são fundamentais (aliás, descobri que tem um bar de happy-hour numa travessa da Paulista que tem rodízio de petiscos, mas nunca fui). Atendimento? Limpeza? Serviço delivery?...

Quando elejo o Biro, não me refiro a nenhum desses quesitos adotados pelos críticos dos Guias e Revistas de São Paulo, até porque o Biro perderia em todos, exceto atendimento, pois simpatia e solicitude são a marca registrada do Biro, auxiliado por seu fiel escudeiro Geladeira (porque ele sempre está atrás do balcão, de pé, parado, como uma geladeira... Apelidos de bar é um tema que daria outra crônica).

Para mim, o principal aspecto quando se avalia um bar é tão subjetivo quanto o conceito de liberdade: cada um sente de um jeito diferente, cada um pode relatar experiências, manifestações reais, efêmeras ou duradouras, mais intensas ou menos, mas é difícil cravar “liberdade é isso”, “felicidade é aquilo”, como para mim é difícil encontrar a melhor palavra que defina essa adoração que tenho pelo bar do Biro.

Tem a ver com acolhimento. Sem dúvida. O Biro é meu refúgio. Eu procuro isso num bar. Nem sempre, é claro. Algumas vezes procuro mulheres. E cada vez mais elas estão indo ao Biro. O Biro é um bar que o Antônio Prata chamaria de “meio intelectual, meio de esquerda”, com seu balcão velho de fórmica, os bancos gastos, um enorme mapa múndi, um barrilzinho de pinga com o distintivo do Corinthians, a mesa de sinuca no fundo (onde as caçapas são tão apertadas que às vezes parece que o jogo não vai acabar nunca), mas o principal são os dois grandes painéis laterais, retratando cavalgadas e paisagens bucólicas. Esses painéis são realmente incríveis, eu não me canso de olhar para eles. A típica coisa brega/autêntica que a galera pira, e eu já me acostumei tanto com aqueles cavalos ali, me olhando, que não imagino como seria o bar sem eles. Até que um dia, dando na telha ou entrando um dinheiro extra, o Biro manda passar uma tinta, faz uma parede com textura ou algo do tipo, mais “moderno”, mais fácil de limpar, e acaba com a graça da galera hipster.

Voltando ao meu critério para preferir o Biro, refiro-me a um estado de bem-estar simples, absolutamente trivial: encostar-me ao balcão, tendo a minha frente uma garrafa de cerveja e um copo americano. Isso é o básico de um bar. O resto é acessório. Isso remonta, sem dúvida, ao primeiro bar da história da humanidade e ao seu primeiro frequentador, que certamente saiu de lá, montando em seu cavalo, satisfeito e surpreso com aquela experiência incrível, tão simples, tão fundamental: sentar-se ao balcão e beber, se possível beliscando um amendoim, mas isso já é secundário. O principal: balcão, bebida, barra. Sem pentelhação, sem encheção de saco, ninguém tagarelando na orelha. Balcão, bebida, barra – com aliteração e tudo! Sem dar satisfação, sem olhar o cardápio, sem ter que xavecar ninguém, sem ter que escolher a roupa antes de sair de casa. Balcão, bebida, barra e foda-se a menina que você tem que paquerar, que você tem que dar em cima, senão algum filho da puta incansável vai levar a melhor nessa história. Balcão, bebida, barra e não preciso me posicionar politicamente, nem falar de trabalho, nem convencer ninguém sobre nada. Balcão, bebida, barra, Biro e foda-se o mundo, amanhã eu volto a me preocupar com ele...

Tudo isso eu encontro lá, talvez você encontre em outro bar, talvez isso não faça o menor sentido pra você, e neste caso eu recomendo o happy-hour-rodízio-de-petiscos da Paulista ou qualquer lugar novo na Vila Madalena onde a gente não consegue nem escutar o próprio pensamento.

Sobre a barra, o Migue, amigo que entende de bar como poucos e que por isso adora o Biro, me contou que foi ela, a barra, que deu origem ao nome “bar”. Ela é essencial. É onde a gente apoia os pés – quer coisa mais importante do que isso? Mas não é todo mundo que tem consciência da importância dessa barra, sem a qual a gente começa a sentir desconfortos terríveis nas pernas e nas costas. Muito dono de bar não sabe disso e simplesmente manda tirar, como se não fosse fazer falta.

Do outro lado do balcão, está o Biro, solícito, honesto, atento (qualidades que lembram o seu Zé, o garçom que fez tanta fama que acabou dando nome ao bar das empanadas chilenas. Que fim ele teve?). Ali está o Biro e toda vez eu tenho vontade de dizer pra ele como eu gosto do seu bar, como para mim é bom estar ali olhando os cavalos, o mapa, o Geladeira, as bolas numeradas correndo pra lá e pra cá, escutando os frequentadores da velha guarda combinando seus churrascos de aniversário, suas caravanas para o litoral... Enquanto isso, amigos de facebook fumam seu cigarro na calçada. Enquanto isso, eu medito, e bebo.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

3 comentários:

disse...

Muito boa, dá até vontade de conhecer o Biro...

Unknown disse...

essa tá demais! adorei!

Unknown disse...

Amei a crônica! Muito boa, que nem o bar do Biro!

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