por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Mesmo que eu me esforce muito na formulação e na elaboração, sei, de partida, que será bem difícil ajustar o tom e expressar a profundidade do que quero dizer. A clássica frase dos discursos, de que “não tenho palavras”, aqui se encaixa justinha. Palavras me faltam até mesmo para começar. Mas insisto.
Durante rápida caminhada aqui perto de casa, o olhar do belo rapaz negro cravou em mim um largo e genuíno sorriso, acompanhado do melhor “bom dia” que eu poderia esperar. E despertou as borboletas dormidas no meu estômago.
Algumas semanas atrás, a seção brasileira da Anistia Internacional lançou a campanha “Jovem Negro Vivo” (https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/), uma iniciativa de conscientização da sociedade, anestesiada sobre a realidade do genocídio da juventude negra. Se você acha exagerado usar o termo “genocídio” para definir o que acontece, o Aurélio, em versão resumida, me acode: “destruição metódica de um grupo étnico pelo extermínio dos seus indivíduos”. O termo foi forjado no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, para definir a eliminação sistemática de grupos étnicos praticada pelos nazistas.
Todas as pessoas que conhecem o Brasil e vivem aqui sabem do que estou falando, por mais que evitem ver. Nossa cegueira está calcada em séculos de desprezo por qualquer indivíduo que tenha ou aparente ter menos. Aqui, nascer negro ou negra define ter e ser menos, de saída. Simples assim. No rap “Haiti”, Caetano Veloso adverte sobre o cenário contemplado a partir do adro da Casa de Jorge Amado, no Pelourinho de Salvador: “a fila de soldados quase todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos... só pra mostrar... como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. Mas só pretos se importam com pretos. Só pretos choram os milhares de jovens pretos amputados de viver e realizar seu potencial e suas habilidades em benefício próprio.
Enquanto isso, nossa capacidade de copiar gringuices esquisitas parece inesgotável. Até Halloween e Black Friday entraram na lista de eventos apreciados por jovens brancos, que falam uma língua diferente da minha, salpicada de palavras inglesas adaptadas à força de customização, blutuf, delivery e companhia. Lá na gringolândia, a segregação e a discriminação dos negros foi muito mais profunda e escancarada do que aqui, é o argumento que os tolos usam para nos fazer sentir menos responsáveis pela nossa própria tragédia racial. Porém, se os branquinhos de shopping prestassem atenção nas imagens dos protestos que vêm acontecendo por conta dos recentes assassinatos de jovens negros por policiais nos Estados Unidos, veriam que há muito deixaram de ser manifestações só de negros. E estão sacudindo o país com sua indignação e clamor.
Isto, nem lhes ocorre imitar. Deixe quieto, aqui a gente tem outras prioridades de mobilização, atividade há pouco ressuscitada na nossa vida política. No topo da lista, o inconformismo com o resultado do jogo democrático, que inclui uma bizarra vertente chamando os carrascos militares de volta, por mais incrível que possa parecer.
Eu, na minha inescapável brancura, quero todos os meninos e meninas, de todas as cores, bem vivos. Você me acompanha? Então clique no link acima e veja mais sobre o que estou tentando falar.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
3 comentários:
Feito!
Quem sabe , um dia, o impossível, pelo menos até hoje, vai acontecer. Refiro-me à pratica da ordem de Cristo "amai-vos uns aos outros". Não creio que estarei viva para ver esse dia feliz.
Bela lição de cultura, civismo e...de amor ao próximo.
Parabéns pela felicidade com que expôs tão sério problema . Cumprimentos
ao Fernando.
Beijos da Mummy Dircim
Júnia, pego sua carona e embarco na campanha:"quero todos os meninos e meninas, de todas as cores bem vivos".
Parabéns pelo texto!
Terê
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