por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Coisas acontecem enquanto cozinhamos. Dia desses, na casa de uma amiga, aberta a garrafa de vinho da inspiração culinária e providenciado o fundo musical, as vozes de Simon & Garfunkel me levaram a uma viagem no tempo e na memória. Há muito não os ouvia, o que é lamentável e exige imediata correção de rumo. Algumas das canções que essa dupla compôs e interpretou décadas atrás estão entre as mais lindas que me acompanharão sempre.
A sorte é que o caldo do risoto já estava pronto e a minha principal tarefa era orientar na preparação do prato, porque o golpe foi forte. Viajei para aqueles tempos em que a música nos consolava pela falta de liberdade e perspectiva, e nos conduzia a lugares mais amenos, cheios de poesia e respostas, ora amorosas, ora engajadas, ora inquietantes, para nossos jovens corações e mentes repletos de perguntas.
Tempos em que as letras das músicas vinham impressas nos encartes dos discos. Na ausência deles, exercitávamos nossos ouvidos e nossos rudimentos de inglês, transcrevendo as palavras conforme as entendíamos. Coisas incríveis resultavam dessas tentativas, que já renderam muito texto divertido por aí. Levei anos para acertar alguns trechos da antológica “O bêbado e a equilibrista” (de Bosco e Blanc), por exemplo.
“Kathy’s song”, composta pelo Paul Simon, é uma das que amei muito e estava submersa na memória. Emergiu ali, à beira do fogão, grudou no meu juízo, enquanto eu despejava conchas de caldo no arroz, e ficou de campana em alguma dobra, esperando o momento de me atormentar. Este chegou hoje e me fez buscar a letra, comprar a gravação (bendita internet!) e mergulhar no seu lirismo.
É tão bonita, mas tão bonita, que nem sei explicar. As palavras justas, simples e diretas, enfileiradas e costuradas à melodia com perfeição, descrevem sentimentos conhecidos e recorrentes, de maneira única. Melancolia, saudade, solidão e a chuva encharcando a rua, paredes e telhados. Quem desentende? Para mim, a melhor poesia e a melhor comida se fazem com ingredientes básicos, precisão, simplicidade e a sensibilidade de quem prepara. O resultado depende do estado de espírito, da inspiração e da intimidade com os ingredientes. Beleza pura foi o que encontrei lendo Adélia Prado ou ouvindo “Mucuripe” (de Fagner e Belchior) pela primeira vez, para mencionar apenas duas entre as muitas maravilhas que essa vida danada de complicada nos oferece. E sentidos atentos são indispensáveis para que se produza o encanto.
Tocar os sentidos e sentimentos das pessoas parece fácil e barato, ainda mais agora, com a facilidade que temos para entupir o espaço digital com enxurradas de palavrório e notas musicais amontoadas – aonde encontramos também um sem-número de aulas, dicas e receitas culinárias. Engano. É preciso ter a luz.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
2 comentários:
Que sensibilidade !!! Canto da própria alma ! Pássaros entrando pelo estreito vão do cogobó, trazendo a verdadeira música, aquela que fala, canta e encanta.
Seja bem-vinda após suas férias e faça um risoto cheiroso, musical,perfumado ,daqueles que só a Júnia consegue fazer, leve como a fumacinha que está subindo da ilustração do Fernando.
Kisses from Mummy Dircim.
Nossa, agora voltei aos anos 70.
Tem uma música minúscula deles que grudou na minha cabeça desde lá e que volta e meia surge do nada : Bookends. Linda!
Música, poesia e comida têm a mesma raiz: o saber e o sabor. Márcia Ester
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