Presidenta rompe mês de silêncio com explicação de que ajuste fadado a provocar recessão e desemprego vai fortalecer projeto calcado em criação de postos de trabalho e crescimento. Legitima Levy e aumenta divórcio entre política e realidade
por João Peres*
Quem esperava por sinais à esquerda terá de guardar o manto da ingenuidade no armário por mais algum tempo. O primeiro discurso de Dilma Rousseff após a posse serviu para manter boquiabertos os perplexos e alegres os sorridentes. Há quem diga que o período de campanha foi de um rico aprendizado para a presidenta. Não foram encontrados sinais que transformem em tese esta hipótese. Pelo contrário.
Os esforços de retórica feitos durante os 40 minutos da fala que abriu a primeira reunião do novo ministério são louváveis. Mas não mudaram em nada a tradição de uma repetição exaustiva de parcas realizações e de contradições gritantes entre discurso e prática. Dilma buscou demonstrar que um ajuste fiscal criador de desemprego e recessão redundará num fortalecimento do projeto iniciado há doze anos preconizando a abertura de postos de trabalho e o crescimento econômico. Os elementos apresentados no discurso são insuficientes para reverter a ideia de que caminhamos para uma gestão neoliberal com resquícios de um progressismo ao qual se está atrelado muito mais pela vergonha de uma ruptura definitiva que por compromisso ideológico real.
“Os ajustes que estamos fazendo, eles são necessários para manter o rumo, para ampliar as oportunidades, preservando as prioridades sociais e econômicas do governo que iniciamos há 12 anos atrás. As medidas que estamos tomando e que tomaremos, elas vão consolidar e ampliar um projeto vitorioso nas urnas por quatro eleições consecutivas e que estão, essas medidas, ajudando a transformar o Brasil”, afirmou a presidenta.
Quem realmente acredita que as eleições trouxeram mudanças positivas na relação entre Dilma e a arte de fazer política precisa olhar com mais carinho para o primeiro mês de gestão. A exemplo do que ocorrera em 2011, a agenda presidencial se concentrou em compromissos palacianos. No vazio deixado pela ausência prosperam o boato, a mentira, a perplexidade. Suposições surgidas no primeiro mês se mostraram, infelizmente, corretas.
Se o sumiço de Dilma havia transmitido a impressão de que Joaquim Levy é um superministro da Fazenda, a presença física acabou por confirmá-lo nessa condição. “Tomamos algumas medidas que têm caráter corretivo, ou seja, são medidas estruturais que se mostram necessárias em quaisquer circunstâncias. Vamos adequar, por exemplo, o seguro-desemprego, o abono-salarial, a pensão por morte e o auxílio-doença às novas condições socioeconômicas do país.”
O malabarismo do exercício do poder é difícil em qualquer situação. Pior ainda para alguém que tem dificuldades comunicacionais severas. Durante o discurso, Dilma fez enorme esforço para dizer que este é um governo de continuidade, mas também de mudanças, ou de mudanças, mas também de continuidade. “Nossa tarefa será manter o projeto de desenvolvimento iniciado em 2003, mas dar continuidade com avanços, dar continuidade com mudanças que lhe darão, que darão a este projeto ainda mais consistência, mais velocidade.”
A repetição exaustiva da exortação de valores supostamente intrínsecos a este governo não tem ajudado nesta missão. Até onde se possa enxergar, não há comprovação de que Dilma seja cínica. É mais complexo que isso entender como se chega a uma situação em que a prática contraria o discurso. Um entorno pouco sincero, capaz simplesmente de criar um mundo de magia, e o distanciamento da realidade provocado pelo poder são hipóteses a ser avaliadas.
“Nós devemos enfrentar o desconhecimento, a desinformação sempre e permanentemente. Vou repetir: sempre e permanentemente. Nós não podemos permitir que a falsa versão se crie e se alastre. Reajam aos boatos, travem a batalha da comunicação, levem a posição do governo à opinião pública, a posição do ministério, a posição do governo à opinião pública. Sejam claros, sejam precisos, se façam entender. Nós não podemos deixar dúvidas.” É como se Felipão pedisse a seus jogadores que fossem educados, polidos e trabalhassem pela valorização dos direitos humanos.
É bem verdade que governos do PT, via de regra, sofrem com boatos e mentiras difundidos via mídia tradicional. Sem entrar na discussão sobre o quanto os próprios petistas alimentaram, com ego e informações, estes segmentos da imprensa, o fato é que neste começo de segundo mandato não é preciso apresentar qualquer distorção para que parte da população se enfureça com o governo. “Por exemplo, quando for dito que vamos acabar com as conquistas históricas dos trabalhadores, respondam em alto e bom som: 'Não é verdade!' Os direitos trabalhistas são intocáveis e não será o nosso governo, um governo dos trabalhadores, que irá revogá-los.”
O que a presidenta tem feito é aumentar cada vez mais o abismo entre a política institucional e a população. Se o Ministério do Trabalho e Emprego avalia que dois milhões de brasileiros serão prejudicados pela mudança nas regras de concessão do seguro-desemprego, como pode ser verdade que os direitos trabalhistas são intocáveis? Entre o “nem que a vaca tussa” da campanha e a ação concreta existe uma distância imensa, que encontra semelhança no espaço existente entre a afirmação de que este é um “governo dos trabalhadores” e um ministério formado por Joaquim Levy, Kátia Abreu e Gilberto Kassab. Uma vala que Dilma vai abrindo entre si e a realidade: entre si e a sociedade.
Entre as intenções concretas do governo, apenas repetições: fazer do Brasil uma “pátria educadora”, sem explicar como chegaremos lá; acelerar a agenda de privatizações de portos, aeroportos e rodovias; encaminhar para o Congresso um pacote anticorrupção; e brigar para que seja realizada a reforma política. A respeito desta, de novo, nada além da exortação que indica que o país precisa mudar as regras atuais de eleição e de financiamento de campanha. Sem explicar como e por quê, sem peitar o Congresso, não vamos além do esforço retórico.
Ao repetir o repertório relativo à defesa da Petrobras, “a mais brasileira das empresas”, Dilma incorreu em mais uma contradição: “As empresas têm de ser preservadas, as pessoas que foram culpadas é que têm que ser punidas, não as empresas.” Maltrata, assim, uma bandeira de seu próprio governo. Em 2013 foi sancionada pela presidenta a Lei 12.846, que deu um passo fundamental no combate à corrupção ao prever que corporações envolvidas em atos de corrupção sejam punidas. A legislação representou um passo enorme no campo simbólico ao nos fazer recordar que o ato de corromper precisa de dois lados: sem a ponta que suborna, compra, direciona, não há agente público que possa se envolver em desvios – malfeitos, para ficar no jargão presidencial.
Há alguns fatores que podem explicar a ideia de preservar os dedos e cortar os anéis. São bastante pragmáticas. Uma diz respeito diretamente à Petrobras, que pode se tornar inviável a depender das decisões decorrentes da Operação Lava Jato. A outra, diretamente ligada a essa, reside na visão de que a colocação de obstáculos à participação do cartel brasileiro de empreiteiras em obras públicas teria efeitos catastróficos sobre a economia nacional, incapaz de substituir as atuais corporações sem um grande intervalo no qual se teria de frear investimentos e realizações. Fácil de explicar. Não para o governo Dilma.
A primeira aparição pública após a posse serviu para que a presidenta derretesse o resto de credibilidade existente junto aos setores progressistas. À exceção dos governistas incorrigíveis que se enxergam como integrantes de uma certa esquerda, é difícil imaginar grupos que a tenham apoiado na disputa contra Aécio Neves e que ainda nutram disposição de distorcer a realidade para encontrar justificativas para o que vem sendo realizado. As pontes estendidas gratuitamente durante a campanha estão implodidas.
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João Peres é jornalista. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.
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