Nesses últimos dias, ando às voltas com uma grande mudança. De casa, de cidade, de país. A quarta mudança em quatro anos. É um tal de colocar livro em caixa, tirar livro de caixa, arranjar estante pra tanto livro. É um constrangimento a cada gaveta que se abre, diante das repetidas constatações do humano poder acumulador seja lá do que for. Crachás, por exemplo. Caixinhas. Roupas. E livros.
Revisitar as caixas de fotos, cadernos, cartas de toda a vida, empoeiradas, sempre à espera do momento tão prometido da organização, da produção de álbuns, da digitalização.
E é também o enterrar e desenterrar raízes, criar mudas de si mesma capazes de multiplicar o amor que a terra onde paramos nos traz e multiplica também em nós. Porque cada mudança me ensina que as raízes que nos sustentam não são apenas as nossas, mas também aquelas dos amores que nos deixam suas pequenas mudas ao longo do caminho e de cada paragem.
Pensei logo em Quintana, que me ensinou que amar é mudar a alma de casa. “Rapaz”, eu disse a ele, “não será por acaso que esse negócio de amar é assim tão trabalhoso, não é verdade?” Carregar para a casa do outro o acumulado, o empoeirado, o quebrado, o mal consertado. E juntar um tanto mais, e quebrar um outro tanto. E também construir, e descobrir, e deixar que se aprofundem e se misturem novas raízes. Ter que fazer mudança do amor do outro, ou de um amor para outros, é revisitar muito, é mover muito.
Há quem ame mais leve, assim como há quem viva mais leve. Sem pouso permanente em casa ou coração. E vá flanando pela vida, carregando casas e amores mais etéreos e abstratos em espaços aéreos mais facilmente transportáveis (lembrei agora de um livro infantil lindo, lindo, que mostra os amores como balões...).
Há também quem ame no concreto dos tijolos e do cimento, da permanência. Terra ocupada, lavrada e preparada pedaço por pedaço. Morada construída com a consciência do peso e do sentido de cada pedra. Amor patrimônio.
E entre uma ponta e outra, tantas combinações e misturas quanto permitir a imaginação e o desejo humano de ocupar e ser ocupado.
Eu fico meio lá, meio cá, certa de que há que se construir e guardar o amor para imprimir sentido à existência, mas há também que se levar o amor, mover o amor e movimentar a alma. E assim como ficaram em mim pedaços de cada casa que se foi, ficam sempre em mim pedaços dos amores que vivi. Amores que não acabam só porque se mudam. Ficam aqui guardados, nas caixas e nas estantes da alma.
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Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico.
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