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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Clichês


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

 Descobri o prazer da leitura, pra valer mesmo, com o “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo. Até então, eu me entretinha largamente com livros de histórias infantis, Seleções do Reader’s Digest e épicos religiosos, mas o meu primeiro romance de gente grande foi essa estória amalucada dos cadáveres insepultos na pequena Antares. Depois deste, muitos livros do grande – e hoje meio esquecido – Érico me proporcionaram emoções e reflexões importantes na formação da adulta que vim a ser. Entre eles, suas memórias, publicadas nos dois volumes de “Solo de Clarineta”, pouco antes de um infarto o matar e me deixar um tantinho órfã.

Entre as memórias, um relato sobre uma visita do escritor a Portugal, sob a ditadura de Salazar, que me deixou muito curiosa sobre o país. Lá estive já três vezes, a última delas há poucos dias.

Desde que pisei em Lisboa pela primeira vez, mais de quinze anos atrás, fui tomada por um encanto arrasador por essa mistura da cidade que sobe e desce colinas – num labirinto no qual jamais me sinto perdida – com o céu, quase indecente de tão escancarado, e a água. Encanto que se renova e aprofunda a cada vez que volto. Acho que nunca vou me cansar desse casario tão simples e bonito e das praças, ladeiras e miradouros que sempre guardam em alguma dobra uma beleza que a gente não havia visto antes. Nem dos exageros de açúcar e azeite a que alegremente me entrego.

A história dos navegadores portugueses e o protagonismo do país na definição da cara que o mundo tem hoje é em tudo desproporcional às suas dimensões concretas. Contrariando as probabilidades, realizaram façanhas que mudaram a História, e creio que foi o fascínio desta unha da Europa pelo mar que a impulsionou a aprender a domá-lo o suficiente para ir em busca do desconhecido e inventar novos mundos. Pensar nisto só faz crescer minha admiração por essa gente, em que pesem as agruras que seu Estado colonial nos impôs em séculos passados.

E eles têm Óbidos, a cuja porta desembarquei de um ônibus num meio-dia frio e molhado. Já da autoestrada se avista a vila medieval e seu castelo, contida por uma muralha que lhe faz o contorno completo. Não mais do que algumas centenas de casinhas baixas caiadas, com faixas de cores berrantes ou azulejos adornando as fachadas, e três igrejas. Intactas, como o empedrado das ruas, dando a sensação de que a qualquer momento um menestrel surgirá entoando uma cantiga d’amor ou d’amigo para saudar os visitantes do século 21 e posar para seus espertofones.

Lá pelo segundo ou terceiro dia da visita, recebi uma mensagem de uma amiga que estava viajando pelo interior do país. Estava muito emocionada com a intensidade da beleza dos lugares, e sugeria enfaticamente que eu seguisse sua rota. Dizia que, diante do que estava encontrando, concluía que a palavra “saudade”, que tanto gostamos de acreditar ser monopólio lusófono, só poderia mesmo ter sido criada em Portugal.

Sem mais – com as minhas desculpas pelos clichês.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Como diria Fernando Pessoa: "Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / ... Para que fosses nosso, ó mar! / Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena." Para não citar "Os Lusíadas"...
E Lisboa einfim... é Lisboa! Em tantos versos celebrada e em tantos fados cantada... "Vende sonhos e maresia, / tempestades apregoa. / Seu nome próprio, Maria. / Seu apelido, Lisboa."
Beijos, Martina.

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