por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
No passado recente, o mundo se dividia entre capitalismo e comunismo, Estados Unidos e União Soviética, como consequência da divisão de áreas de influência territorial e política que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Como sabemos, a rendição do Japão, que precipitou o fim do conflito global, foi obtida pelo uso de bombas atômicas, um recurso extremo e definitivo.
A partir daí, esses dois lados, de tendências políticas divergentes, que se haviam aliado para ganhar a guerra contra forças realmente opostas, passaram a viver em permanente beligerância, cada qual latindo para o outro o tempo todo e ameaçando usar seu respectivo arsenal nuclear para ampliar e jamais perder um milímetro sequer do poder ou dos territórios divididos entre eles. Instalou-se, assim, a "guerra fria", feita de espionagem, infiltrações, manipulação, muitas ameaças e alguns quase-ataques. A vida no planeta estava em jogo, uma vez que as ogivas nucleares em poder de cada lado eram mais que suficientes para não deixar nenhuma florzinha ou passarinho de lembrança, caso os botões dos mísseis fossem acionados. Talvez baratas, bichos de idade contada em milhões de anos, sobreviventes de todas as catástrofes anteriores, segundo as piadas lúgubres que se contavam.
Mas um dia essa dureza toda afrouxou, os alemães derrubaram com as mãos o muro que simbolicamente dividia o mundo, um historiador decretou o fim da História e todo mundo prendeu a respiração, pra soltar em seguida, num anticlímax que, olhado à distância, teve o seu lado cômico, tão bem registrado no filme "Adeus, Lenin!". Alguns dinossauros perduraram e resistem, mais por teimosia e conveniência do que por convicção, e preservam seus países como parques temáticos, tristes disneilândias ideológicas.
Em termos históricos, tudo isso aconteceu de ontem pra hoje, e muita gente ainda tem dificuldade de perceber que o binarismo político virou pó de traque, a dicotomia de pensamento caducou de vez, o certo e o errado de viés religioso e ideológico se transformaram em peças de museu. Estão nos atrasando, e muito.
Ainda somos bem capazes de destruir a vida no planeta, minando-a na sua própria essência, quando destruímos os elementos essenciais para a sua manutenção e fazemos desaparecer a água, entupimos o mundo com motores movidos a combustíveis fósseis e lixo de todo tipo e desprezamos a urgência de dividir a comida de maneira que encha a barriga de todos os seres vivos todos os dias, entre outras tantas coisas. E, ironia das ironias, substituímos as disputas políticas por terrorismo de inspiração religiosa, como se andar para trás nos devolvesse as referências estáticas, que tanta falta fazem a quem não consegue perceber a beleza, a força imensa e a possibilidade de justiça embutidas no pluralismo e na diversidade, filhos mimados da liberdade.
Ultimamente, pouco se fala dos arsenais nucleares, mas isto não significa que tenham deixado de existir. Por enquanto, estão quietos, e nós continuamos aqui. Se formos espertos o suficiente e conseguirmos avançar, mais do que retroceder, poderemos ficar por muito mais tempo.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
5 comentários:
Afemaria! É tanta lucidez que até dói. Esse texto vai para todos/as os/as meus/minhas alunos/as; pode?
A ilustração do Fernando está minimalistamente impecável!
Márcia Ester
Obrigada, Márcia Ester. O texto é público, pode circular à vontade.
Pois seus botões estão em perfeita sintonia com os fatos mais marcantes dos últimos tempos. Oxalá sejam lidos por algum desses arrogantes donos do mundo da atualidade. Quem, umas lentes de aumento, dessas bem poderosas,ajudem a mostrar a nitidez de conteúdo tão precioso.
Em frente, Junia. Abraços pra você e Fernando.
Mummy Dircim
É um privilėgio, Júnia, ter uma pensadora como você, nos oferecendo um texto deste calibre. Parabéns a vc e ao Fernando!
Terê
Cá com meus botões: cego é aquele que não vê que o arsenal ainda está ai. A ameaça é sútil agora, minha amiga.
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