Dilma parece dirigir
tranquilamente rumo a uma explosão. Alckmin e Eduardo Cunha têm
algumas toneladas de dinamite para emprestar. Estamos vivendo uma situação pré-revolta?
por João Peres*
Poucas imagens definem
tão bem um governo. Poucos governos são tão infelizes em seu
autorretrato. Em 11 de junho de 2014, Dilma Rousseff foi a Salvador.
Era um evento de grande força. Depois de anos e anos de enrolação
entre prefeitura e governo da Bahia, o metrô da capital entrava em
operação graças aos recursos enviados pela administração
federal. Uma data perfeita: às vésperas do começo do Mundial, um
retorno efetivo dos investimentos provocados pelo evento da Fifa. Uma
agenda positiva a poucos meses de eleições que se avizinhavam
difíceis em todos os níveis.
Os assessores de Dilma
planejaram uma foto tradicional para o momento: coloca-se a
presidenta dentro da cabine de operação de um trem, ela sorri,
acena e vai embora, com missão cumprida. Nenhum assessor ou
ministro, porém, parece ter notado uma piada de caráter tragicômico
– ou, se notou, não contou. O fotógrafo Roberto Stuckert Filho,
integrante do clã que há décadas registra os poderosos de
Brasília, flagrou a presidenta a caminho do Campo da Pólvora. A
culpa não é dele, obviamente. Mas ninguém por ali parece se ter
dado conta de que o nome da estação a que se dirigiria aquela
composição era esta infeliz coincidência do destino. “Em teste”,
“Viva Salvador”, “Metrô”: qualquer nome escrito no letreiro
serviria. Até “Bonde do ACM” estaria melhor. Havia meia dúzia
de nomes de outras paradas que poderiam ter sido usados. Não, não
foram: Dilma comandou um trem que rumava para um lugar, digamos, explosivo.
Pesquisar fotos da
presidenta para uso em reportagens sempre foi difícil. No período
Lula havia sempre dezenas e dezenas de opções. Com Dilma, não.
Predominam as imagens carrancudas, reveladoras de um corpo
endurecido, sem grande capacidade de expressão. Quando não se vai
por esse caminho, a seleção oficial de imagens prioriza as que ela aparece no corpo a corpo, em fotos posadas ao lado de
populares ou de uma claque que claramente não está à vontade com a
cena.
Durante as eleições,
a equipe de campanha tentou fazer de Dilma o seu oposto: não havia
nos álbuns de imagens uma foto que não mostrasse um largo sorriso.
Era uma candidata eternamente sorridente numa campanha em que havia
poucos motivos para isso. Quem procurava por retratos simbólicos da
gravidade do momento tinha de apelar a agências de notícias, ainda
que, por vezes, estas pecassem por fazer o caminho exatamente contrário
ao da versão oficial.
E eis que um belo dia,
no programa eleitoral na televisão, surgiu a foto de Dilma na
inauguração do metrô de Salvador. A repetição de um erro
simbólico revela o que todos já sabemos, ou seja, que a assessoria
de comunicação do entorno da presidenta é distraída, para dizer o
mínimo. Olhada em perspectiva, aquela imagem intensifica seu caráter
tragicômico. A presidenta exibe seu sorriso amarelo, alheia a seu
entorno, na sua antinatural alegria. Junto com ela está a
maquinista. Não está ali Aloizio Mercadante, o ministro-chefe da
Casa Civil, afeito a aparições públicas forçadas por sua cada vez
menos implícita pretensão de ser candidato ao Planalto em 2018. Não
estão ali seus ministros das Cidades, do Planejamento, da Fazenda. A
presidenta está sozinha enquanto toma o rumo da explosão.
Não parece que se
passaram apenas oito meses desde que foi feita. A fotometáfora
produzida ao acaso pela equipe presidencial não poderia ser mais
adequada a nosso presente. Dilma dirige um trem que vai para o Campo
da Pólvora sem que tenha sido informada por seus assessores. Está
ali, dirigindo alegremente, sem notar que caminha à santíssima
merda. Quem está do lado de fora abana as mãos, dá tchauzinhos,
torce para que os explosivos estejam bem longe do ponto de partida
para que se salvem.
O problema é a
impressão de que estamos todos dentro daquela cabine. Ou quase
todos, porque os mais espertos sempre se salvarão. Dilma, com o
devido respeito, não cabe nesse último grupo. Como todos sabemos,
faltam-lhe comunicação, habilidade política, rapidez
administrativa, confiança nos outros e uma série de outros quesitos
que fazem do presidente um estadista. Dela nem pedimos tanto. Não
era possível esperar nada além de um aperfeiçoamento do período
anterior.
Caro eleitor de Aécio
Neves, terás mais ajuste fiscal do que querias. A pesquisa Datafolha
divulgada no último fim de semana apenas quantifica o que já se
sabia: quando o candidato vencedor implementa a agenda do candidato
derrotado, causa um estrago imenso. Nela, a taxa dos que consideram o
governo Dilma ótimo ou bom despenca de 42% para 23%, e os que o
enxergam como ruim ou péssimo vão de 23% para 44%. Sim, uma exata
inversão de curvas. A maior queda se observou entre os cidadãos com
escolaridade e renda mais baixas, desmentindo pela enésima vez a
tese de Fernando Henrique Cardoso de que os “grotões” são mal
informados e acéfalos. A presidenta perdeu força também no
Nordeste e no interior, regiões que lhe foram extremamente
favoráveis na disputa eleitora.
A plataforma de corte
de direitos trabalhistas, aumento de impostos e redução de
investimentos fez, como era fácil prever, com que a população
reforçasse a ideia de que entre o discurso e a prática nada existe.
46% dizem que Dilma falou mais mentiras do que verdades durante as
eleições, 47% a consideram desonesta (contra 39% que pensam o
contrário) e 54% dizem que é falsa, um crescimento de 41 pontos de
2012 para cá.
As explicações
encontradas pelo entorno presidencial para a queda drástica na
aprovação vão do ridículo ao bizarro. "Já convivemos com
períodos de baixa aprovação nesses últimos 12 anos e mostramos
que, com trabalho, somos capazes de recuperar", disse o ministro
Miguel Rossetto, da Secretaria-Geral da Presidência, esse cargo que
parece ter sido criado para transmitir explicações implausíveis.
Mais infeliz é o
argumento de que faltou comunicação para deixar claro ao povo que
os ajustes feitos agora são necessários para manter a trajetória
de criação de postos de trabalho e aumento de renda. Claro, faz
todo sentido: todos vamos entender que um pouco a mais de desemprego
e um pouco a menos de dinheiro são bons, especialmente para garantir
que o mercado financeiro aumente seus lucros mediante o aumento da
taxa básica de juros e o desestímulo ao investimento produtivo.
Dilma não dá sinais de que tenha capacidade para reverter o divórcio que está ajudando a promover
entre a população e o mundo da política institucional. É bem
verdade que essa separação começou muito, muito antes que ela
surgisse em cena, mas o cruzamento de uma série de fatores
históricos e conjunturais pode fazer com que seja agraciada com o
direito de jogar a pá de cal numa relação desgastada. A água de
Geraldo Alckmin e a Câmara de Eduardo Cunha se somarão à herança
mal resolvida das manifestações de 2013 e ao inesperado desgaste da
imagem presidencial, catapultado em novembro e catalisado em janeiro.
Se a sondagem divulgada
pela Folha de S. Paulo guarda espaço para uma surpresa, esta reside
no fato de que Alckmin e Fernando Haddad também sofreram um enorme
desgaste. Cada um por seus motivos, voltam todos a mergulhar na vala
em que estiveram metidos em junho e julho de 2013. Vejamos os
resultados: Dilma foi reeleita de forma sofrível graças à ajuda de
uma militância que trabalhou aguerrida e calada, e aos esforços de
alguns quadros políticos graúdos; Haddad perde a cada dia mais
apoiadores e sofre resistências dentro de seu partido, não sabendo
nem mesmo se concorre a um novo mandato em 2016; Alckmin ganhou mais
um mandato de governador com os dois pés nas costas.
A conclusão que se
tira disso é a óbvia: o tucano, ou as forças que ele representa,
sairá deste buraco do mesmo jeito que entrou. Dilma, Haddad e o PT,
não. A incapacidade de autocrítica continua como regra entre o
comando petista, mesmo depois que as eleições do ano passado
mostraram um partido em decadência após um período de crescimento
vertiginoso garantido por um líder político único. Passado o
turbilhão, as correntes que demandavam uma refundação foram
escanteadas, vencidas por aquelas que consideram que o mais
importante é ajeitar-se na máquina do poder e garantir um lucro
individual em detrimento de uma história de lutas e avanços.
O PT, ou os quadros que
mandam no PT, continuam a fingir que não são meros emergentes no
meio dos quatrocentões. Hoje são chamados para as altas rodas
porque bancam o baile e as bebidas. Amanhã, afastados do poder
emanado do dinheiro, voltarão a frequentar o rala-coxa e o batidão,
onde receberão olhares reprovadores de quem se sente traído.
“Falando francamente:
muitos de nós estão mais preocupados em manter – e se manter –
nessas estruturas de poder do que em fazer a militância partidária
que estava na origem do PT.” Luiz Inácio Lula da Silva parece ser
o único líder político que reúne os predicados necessários para
algum resgate da crebilidade das instituições. Durante o discurso
pelos 35 anos de seu partido, celebrados em Belo Horizonte no último
sábado, ele começou mal. Apostou na retomada do Fla-Flu eleitoral,
aquele que diz que a oposição não tem moral algum para criticar um
partido que transformou o país. Valeu-se da ideia de que os
derrotados nas urnas estão buscando abertamente a via da
instabilidade, o que é verdade, mas não é suficiente: a via da
instabilidade é mantida aberta por um governo que em três meses
contraria todo o discurso que o elegeu, que permite o fisiologismo e
a corrupção, que perde o poder da criatividade.
Lula voltou a deixar
claro que entende, ao menos nas linhas gerais, o que está
acontecendo: seu partido perdeu contato com a sociedade, eliminou as
pontes que o garantiam o papel da inovação, frustrou admiradores
novos e antigos. “Há muito mais preocupação em vencer eleições,
em manter e reproduzir mandatos, do que em vitalizar o partido. As
direções, tanto as regionais quanto a nacional, ficaram
prisioneiras dessa lógica. Tornaram-se burocráticas, pouco
representativas da nossa base social, ou então apresentam uma
representação meramente artificial de setores sociais.”
Se os números do
Datafolha estiverem corretos, e os dados da realidade nos permitem
dizer que são verossímeis, temos uma repetição de junho de 2013
em termos de desgaste do sistema político. Por enquanto, um junho
sem ruas. Vivemos uma situação pré-revolta? Se tivermos uma
revolta, como será? Certamente não será a sonhada pela esquerda,
aquela que conduz a uma situação protorrevolucionária capaz de
finalmente assentar bases para a construção de um novo Estado –
por consequência, de um novo sistema político. A famosa “voz
rouca das ruas”, capturada há quase dois anos por força da mídia
tradicional, transforma-se na expressão mais bruta de nosso sistema
educacional político inexistente. Na hora H, sem água, sem emprego,
com inflação, a imensa maioria da população não terá como
expressar o que deseja que mude, por qual caminho, com quais forças.
Junte-se a isso uma vontade louca de golpe branco e está feita a
besteira.
“Que saiam todos”,
dirão, e a resposta do outro lado será uma reconfiguração que
permita deixar tudo como antes, com a diferença de que o emergente
terá sido expulso do clube dos quatrocentões. Lula poderia mudar
essa realidade. Em inúmeras oportunidades falou sobre a necessidade
de refundação do PT. Mas reverter essa situação depende de uma
característica que nunca foi a sua principal: a ruptura. As
informações de bastidores têm dado conta de que o ex-presidente
foi excluído dos debates governamentais pela sucessora. Se for
assim, abrem-se muitas alternativas. Lula pode trabalhar por dentro
para miná-la, o que leva ao risco de que acabem todos tragados. Pode
romper publicamente, tentando levar consigo o PT. Ou pode assistir de
camarote. Seja com Dilma, seja com o PT, seja com os demais partidos,
ele terá de mostrar ousadia para não entrar no trem que leva ao
Campo da Pólvora.
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João Peres é jornalista e um dos editores do Nota de Rodapé
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