por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Quando consideramos como era a vida das mulheres na nossa cultura algumas décadas atrás, com as restrições, o controle, as expectativas plenamente estereotipadas, a total falta de autonomia sobre a vida e o corpo, sempre encontramos algumas figuras que saltam aos olhos, por contrariar tudo isso e inventar seus próprios caminhos. A que tem ocupado meus pensamentos nos últimos dias é Inezita Barroso, recém-falecida, aos noventa anos.
Moça de fino trato, nascida e criada na capital paulista, recebeu da família conforto e educação. Mas, sabe-se lá por que diabos, e para nossa grande sorte, tinha os pés bem plantados na roça e uma curiosidade gigantesca sobre quem éramos os brasileiros, de onde vínhamos, o que nos comovia e nos motivava, o que nos falava ao coração, o que fazia de nós uma nação. Tornou-se cantora, violeira, atriz, folclorista e muitas outras coisas, vocações que identificou, perseguiu e realizou de forma primorosa até bem recentemente.
Enquanto ia armando um legado de pura sensibilidade e beleza, ela se divertia muito, coisa para a qual as moças, especialmente as paulistas quatrocentonas, estavam pouco autorizadas. Nas suas andanças, conheceu uma moda de viola que contava uma estória de cachaceiro. Ao mesmo tempo em que ouviu na canção um lamento nostálgico por um passado rural ingênuo, travestido de versos cômicos sobre o sujeito que evitava entornar o garrafão de uma só vez "porque acho feio", captou a oportunidade de desafiar os costumes com humor, gravando a moda no feminino (em 1954!) e emprestando seu vozeirão à mulher que ousa declarar que a "prosa de omi nunca dei valor" e que, depois de beber todas e criar confusão numa festa, termina faceira, encantada por chegar em casa "de braço dado com dois sordado, ai muito obrigado".
Quem não conhece a "Moda da Pinga"? Marca registrada de Inezita, para a qual as pessoas de boa família torciam o nariz, incapazes de se divertir com a brincadeira e, mais ainda, de perceber a sacada genial. Essa pequena joia atravessou gerações, sobrevivendo até mesmo ao vendaval politicamente correto.
Inezita foi puxar roda de viola nas galáxias. Ouvi dizer que tem feito duetos memoráveis com Cássia Eller e que, quando Chavela Vargas se junta a elas, rola também um "marvado tequila", nas ilustríssimas companhias de Frida Kahlo, Chiquinha Gonzaga, Elis Regina, Leila Diniz, Hilda Hilst e quem mais quiser aparecer.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
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