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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 18 de março de 2015

Marcha avante

por Tomas Chiaverini*

Foi um domingo assustador, com aquele ódio todo, bairros de classe alta em polvorosa, luzes piscando, buzinas, panelaço, como se estivéssemos prestes a sucumbir num torvelinho de uma revolta insana e descontrolada. Foi assustador porque mesmo quem não viveu a ditadura lembrou de imagens e relatos da “marcha da família com deus pela liberdade”, estopim do golpe de 1964 e de suas posteriores atrocidades. Lá, como cá, o que se viu foi um movimento encampado, não exclusivamente, mas, sobretudo, por uma elite reacionária.

Lá havia o fantasma do comunismo, os ecos da revolução Cubana que deixava as classes privilegiadas se pelando de medo de ter a prataria saqueada pelos bolcheviques. Cá, há um medo difuso de um comunismo que não existe senão como a sombra de um pensamento distorcido para um lado e para o outro ao longo do último século. Acima disso, há certa revolta diante da possibilidade de as regalias dessa elite acabarem divididas com o povo.

Tudo isso catalisado por uma presidente inábil, tanto na ação quanto no discurso. Uma líder que deveria ser um símbolo mas não consegue se livrar da vocação para a gerência. Que se cerca por uma equipe fraca e incompetente, sempre pronta a disparar medidas assoberbadas e contraditórias.

Os escândalos de corrupção, em especial na Petrobras, também servem de combustível, mas seria muita ingenuidade apontá-los como o motivo maior de tanta revolta. Basta levar-se em consideração que o carro chefe do descontentamento foi a cidade de São Paulo, reduto eleitoral de políticos como Paulo Maluf, o homem do “rouba mas faz”.

Motivações à parte, a coisa foi mesmo assustadora. A resposta, contudo, mostrou como a democracia avançou, e como a parte radical do movimento é frágil e quebradiça. Principalmente porque a resposta que veio não foi do governo apenas. Pelo contrário.

O primeiro esboço de resposta da presidente Dilma Rousseff ocorreu no pronunciamento desta segunda, em que a ex-presa política apelou para sua própria história e sentenciou: nunca mais alguém será perseguido, torturado ou morto por expor suas opiniões. Essa é a resposta a altura de um líder de estado, com toda a grandeza e simbologia que o cargo requer. Uma pena que tenha sido praticamente a única.

Por outro lado, bom que as respostas tenham sido plurais. Não como um grito, mas como um diálogo minimamente maduro e equilibrado. Ainda na noite de domingo, por exemplo, a Folha de S.Paulo, o maior jornal do país, cravou no topo de sua home uma manchete que ia contra a informação da Polícia Militar. Estimava haver 210 mil pessoas na Paulista, muito menos do que o 1 milhão oficial.

Caso os golpistas que clamam pelo socorro das forças armadas estivessem no poder, isso provavelmente seria o suficiente para empastelar o jornal e pendurar editores no pau-de-arara. A Folha, claro, não fez mais do que sua obrigação e é apenas um exemplo de uma postura que ajudou a esfriar os ânimos. Diante de reivindicações despropositadas como um golpe militar ou impeachment da presidente, uma infinidade de veículos e profissionais de imprensa se manifestaram pelo equilíbrio e em favor da legalidade e da democracia.

Não foi apenas imprensa. Os militares ignoraram o clamor da meia dúzia de abilolados e se calaram com profissionalismo e aparente respeito às demais instituições. E o próprio presidente da Câmara, Eduardo Cunha, cacique do PMBD, voz retrógrada na política brasileira e inexplicavelmente terceiro na ordem de sucessão presidencial, disse, reiteradas vezes, que não há motivo para impeachment. Um sinal claro, evidente, translúcido de que, ao contrário do que pregam os batedores de panela, nossa democracia está sim, avançando.

Esperemos, portanto, que o Ministério Público e a Polícia Federal siga escarafunchando nas gavetas do poder não apenas para encarcerar corruptos e corruptores mas também para mudar nosso status quo, que vai do jeitinho brasileiro às grandes negociatas. Que a população continue a se manifestar, pressionando governantes a tomarem atitudes mais sensatas. E que isso seja feito com liberdade, sem que ninguém tenha de ser perseguido, preso, torturado ou morto.

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Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha no Nota de Rodapé. Imagem: Paulo Whitaker/Reuters

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