.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 31 de março de 2015

Sorria, mantenha a linha e não se afogue


por Fernando Evangelista*

No dia 10 de junho de 1914, o capitão escocês C. H. Brown acordou às quatro e meia da manhã, fez xixi no penico, vestiu a roupa, colocou o suspensório, olhou-se no espelho e disse: “É hoje!”.

Amante das marés traiçoeiras e das mulheres perigosas, de bacalhaus e papagaios, o capitão era instrutor da Escola de Navegação de Glasgow e realizava uma pesquisa sobre as correntes marítimas da Escócia.

O método consistia em lançar garrafas ao mar, colocando no interior uma mensagem explicativa sobre a pesquisa e um pedido de devolução a quem as encontrasse. Com a informação do horário e do local onde o objeto fosse resgatado, o cientista poderia mapear a rota percorrida, identificando as correntezas. Em 1914, o capitão lançou 1.890 garrafas ao mar.

O tempo passou, apenas 315 foram achadas, o cientista morreu e a pesquisa obteve sucesso considerável, mas havia sido completamente esquecida. E seria o fim desta história não fosse um cidadão escocês de 43 anos, gordinho e careca, chamado Andrew Leaper.

Em abril de 2012, na costa das ilhas Shetland, ele pescou uma das garrafas, exatamente 97 anos e 309 dias depois de ter sido arremessada ao mar pelo capitão Brown. O Livro Guinness dos Recordes confirmou Andrew como o autor do resgate da mais antiga garrafa com mensagem no mundo.

Com o jornal nas mãos, Leopoldo - o sábio dos balcões, filósofo bêbado do Rio Tavares, - leu essa notícia em voz alta para que todos ouvissem e como estávamos só ele, o dono do bar e eu, sua missão teve êxito.

Leopoldo dobrou cuidadosamente o jornal, colocou-o sobre o balcão, olhou para o copo de cachaça na sua frente, olhou para o ventilador de teto, deu uma geral no bar vazio à sua volta, fez que ia pegar o copo, mas pegou o meu braço e disse:

– Meu rapaz, nesta história da garrafa, neste pedacinho de jornal, está a tradução da minha vida e da vida de um bocado de gente.

Farejei o início de lampejos metafísicos. Pelo espelho, o dono do bar lançou-me um olhar que dizia sem dizer: “é sempre assim”, e concentrou-se na lavação dos copos, na nossa frente.

– Eu sou – continuou Leopoldo, com seu jeitão antigo e formal – este velho capitão a jogar mensagens no oceano, com a esperança de que alguém as encontre e as compreenda. Sou aquele que espera e vai fingindo paciência, fingindo não se importar.

– Isso parece letra de samba – eu disse.

Leopoldo esvaziou o copo e prosseguiu:

– Eu sou um pedaço de papel, enclausurado numa maldita garrafa, às vezes em branco, à espera de ideias, outras vezes manchado de erros, à espera de correção. Sou também a garrafa que, mesmo não querendo, mesmo com alguma resistência, vai seguindo a correnteza, indo para direções incertas, talvez girando em círculo, como esta do jornal, achada a apenas 18 quilômetros de onde foi lançada.

– De uma forma ou de outra, quase todo mundo está em busca de um porto seguro – interveio o dono do bar.

– Nada faz sentido – arrisquei.

– Ateu! – gritou o filósofo. Apontou o copo vazio sobre o balcão para que o dono o enchesse mais uma vez e prosseguiu, comparando-se ao mar, imprevisível, marcado por naufrágios, profundezas e por outras coisas que não cheguei a compreender. Parecia mesmo letra de samba.

Com um discreto balançar de cabeça, Leopoldo agradeceu mais uma dose servida pelo dono da bodega, deu outra espiada no ventilador de teto e seguiu a ilação:

– Nosso grande medo é ficar à deriva, sem alguém para nos acolher, é ver o mar nos engolindo e não dar conta do que nos exigem e eles exigem a mesma coisa em todo lugar: “sorria, mantenha a linha e não se afogue”.

Fez uma pausa e seu rosto ficou iluminado.

– Duas coisas, porém, duas coisinhas o marzão não vai me levar, porque são minhas e delas não abro mão.

E mantendo o tom grave e teatral, concluiu:

– Ninguém tasca a minha liberdade e a minha lucidez.

Sorriu, secou mais um copo de cachaça e se foi, sem pagar a conta.

* * * * * *

Fernando Evangelista é jornalista e documentarista. Trabalha na biblioteca comunitária Barca dos Livros em Florianópolis. Esta crônica, publicada ano passado aqui no Nota de Rodapé, foi reescrita e fará parte do livro O Piano de Casablanca (Editora Insular), que será lançado em maio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics