por Fernando Evangelista*
Meu nome é Wesley, com y, tenho 29 anos e trabalhava, até sexta-feira passada, numa ONG dedicada a ensinar música erudita para jovens da periferia. Tudo ia bem, como nas propagandas de margarina, até que um patrocinador faliu, outro morreu, veio a crise e eu acabei metendo o nariz onde não devia.
A ONG, criada por um maestro e dois irmãos, começou pequena, oferecendo aulas gratuitas de piano e violino. Com apoio do município e de um patrocinador privado, além de doações ocasionais, ela cresceu, ampliou os cursos e formou uma orquestra.
Eu não entendo nada de música, mas aquela orquestra era coisa fina. As apresentações, concorridíssimas, lotavam praças, teatros e ginásios. Dava gosto de ver. Ano retrasado, a orquestra ganhou um prêmio do Ministério da Cultura e apareceu numa reportagem em rede nacional. Foi um sucesso.
Minha função na ONG estava escrita numa placa de madeira sobre a mesa: telefonista. Eu mesmo comprei a placa numa feira de artesanato. Diariamente, recebia uma porção de telefonemas e atendia cada um com atenção e gentiliza. Modéstia à parte, sempre fui bom de papo. Tinha especial simpatia pela Dona Dalva, que ligava quase todos os dias, por volta das cinco da tarde, para falar de um gato siamês recém-adotado.
Mas aí começou o drama: o patrocinador da orquestra faliu. E como notícia ruim nunca vem sozinha, o prefeito bateu as botas, abotoou o paletó, e assumiu o vice, que não gostava do maestro, nem de música, e decidiu cancelar o apoio. O dinheiro acabou.
Convocou-se uma reunião de emergência. Foi chamado o Conselho consultivo, o Conselho deliberativo e Conselho financeiro, cada qual munido de calculadora, tabela e planilha. Na sala de ensaios, umas 30 pessoas espremidas e abatidas ouviram o maestro, que vinha a ser também o diretor e fundador da ONG, anunciar:
– Ou encontramos uma saída ou teremos que fechar.
Aquele homem, sempre tão otimista, parecia a sinfonia da desesperança. O vice-diretor também estava arrasado. O maestro passou a palavra ao grupo. Ninguém falou nada. Então, meio sem pensar, levantei timidamente o braço, o coração deu aquela disparada, devo ter ficado vermelho.
– Fale, Wesley – autorizou o maestro.
Confesso que sou atropelado pela vaidade quando ouço o meu nome dito assim, com certa formalidade. Cá entre nós, é um nome de presença. Wesley, com y. Um dia vou ser deputado.
– Por que não vendemos alguns instrumentos? – sugeri.
As pessoas me olharam de um jeito estranho. Não gosto que me olhem assim. Alguém perguntou há quanto tempo eu trabalhava como telefonista. Respondi.
Os representantes do Conselho consultivo, do Conselho deliberativo e Conselho financeiro, canetas suspensas sobre as folhas rabiscadas de cálculos e dívidas, não disseram nada. Quem disse foi o maestro.
– Pode ser uma saída.
E assim foi feito. Primeiro foram vendidos os carrilhões, xilofones, vibrafones, marimbas, pratos, triângulos e castanholas. Quando os alunos de percussão chegaram à escola, deram de cara com o recado pregado na porta de entrada. Foi de cortar o coração.
Era, porém, por uma boa causa. Como se diz por aí, é “melhor perder alguns anéis do que perder o dedo”. Entrou dinheiro, as coisas estavam saindo como planejado. “Boa, Wesley”, disse para mim mesmo, orgulhoso. Um dia vou ser deputado.
A alegria durou pouco. Logo se constatou que o valor arrecadado era insuficiente. Aí foi a vez de vender as flautas, clarinetes, saxofones, oboés, trompas, trombones e trompetes. Os alunos de sopro se surpreenderam com o aviso pregado na porta de entrada. Outra comoção.
Alguns dias depois, os Conselhos administrativo, deliberativo e financeiro constataram que a conta ainda não fechava. E, por unanimidade, decidiu-se seguir com as vendas. E lá se foram os violinos, violas, violoncelos, contrabaixos e o piano de cauda. Falei para um dos alunos, o mais abatido de todos, aquele ditado dos anéis e dos dedos. Ele me mandou à merda.
Outra vez reunidos, os Conselhos decidiram seguir com as vendas. Mas vender o quê?
Já não havia mais nenhum instrumento para vender.
Vou dizer uma coisa: orquestra sem instrumento é um troço feio pra burro, feio e triste como um rio seco. Parece cemitério abandonado. Ouvi uma voz interna me dizendo: “Culpa tua, Wesley, culpa tua”. Eu nunca vou ser deputado.
Para tristeza geral, nessa última sexta-feira, 24 de julho de 2015, a ONG fechou as portas definitivamente. Quando eu estava saindo, depois de limpar minha mesa e guardar na mochila a plaquinha de madeira, ouvi o telefone tocar. Fiquei na dúvida, não sabia se atendia ou não. Atendi porque achei que fosse dona Dalva. Era engano.
Cheguei em casa, liguei a televisão e vi o ministro da Economia, acompanhado de uma trupe de assessores - munidos de calculadoras, tabelas e planilhas -, explicando as razões do novo pacote econômico. Ele falou termos esquisitos como “austeridade” e “governabilidade”. E, coincidência estranha, falou também sobre perder alguns anéis para não perder os dedos.
Apesar de eu não entender nada de economia, nem de anéis, a lógica da autoridade me pareceu semelhante à minha ideia infeliz de vender os instrumentos para salvar a orquestra.
Pensei em escrever uma carta para o ministro, contando esta história. Mas acho que o ministro não tem tempo para ler essas coisas – ele está ocupado, com suas planilhas, calculadoras e tabelas, salvando o país.
Tomara que consiga.
* * * * * *
Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato
2 comentários:
Uau! Excelente! Vou compartilhar por aí.
(Clarissa Amorim, Porto Alegre)
Vou te dizer q concordo com v.Uma pena...
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