Em algum momento do passado remoto, nossos ancestrais começaram a juntar observações sobre mudanças na vegetação, chuvas, temperatura e comportamento dos outros animais com a repetição periódica dos eventos, e concluíram que vivíamos sob o efeito de um fenômeno chamado tempo. Depois inventaram o calendário, tornando possível programar a vida de acordo com os humores sazonais, semeaduras e colheitas. Mais recentemente, com o imposto de renda, a fatura do cartão de crédito e os aniversários. Dependendo do temperamento e da rotina individuais, um ano da nossa vida moderna pode transbordar de celebrações as mais variadas, religiosas, cívicas, sociais, familiares e pessoais.
A memória me traz um dos grandes romances da minha adolescência, “O tempo e o vento”, do gaúcho Érico Veríssimo, uma caudalosa saga dos começos do Rio Grande do Sul. Li os sete volumes de enfiada, como se perseguisse um seriado sobre as aventuras dos Terra-Cambará. Logo nas primeiras páginas, Ana Terra, moradora, com os pais e dois irmãos, de um campo perdido na conturbada fronteira das colônias disputadas por Espanha e Portugal, expressava seu profundo tédio pela rotina de trabalho incessante e isolamento, tal que não lhe permitia acompanhar a sequência dos dias da semana – que, afinal, não fazia nenhuma diferença, pois eram sempre iguais – ou saber exatamente em que ano estavam. Para a inquieta e curiosa leitora, ávida por finalmente completar os benditos dezoito anos, que nunca chegavam, uma inimaginável desconexão.
Fazemos com o tempo todo tipo de associações: “não lembro o ano, mas foi quando viajei de avião pela primeira vez”, ou “vi esse filme na época do impeachment do Collor”, ou ainda “quando isto aconteceu, eu estava grávida da segunda filha”. Isto porque, no fim das contas, o tempo fica marcado dentro da gente, os números são apenas uma referência, à qual nos ensinaram a dar demasiada importância.
E as datas comemorativas? Dá de um tudo, especialmente depois que a internet nos colocou nessas redes sociais. Com a minha enorme preguiça de celebrações obrigatórias, passo batida por todas elas. Até para aniversários me falta competência, o que às vezes me coloca numas tremendas saias justas.
Um dia desses, avisaram que era Dia do Amigo. Quem precisa dele? O encontro, a afinidade, a empatia, o prazer do contato e da companhia, a história compartilhada, o silêncio cúmplice, a conversa – fiada ou relevante – quando tudo isso se junta, com a assessoria de uma taça de vinho autorreabastecida, o tal Dia acontece. Beijinho no ombro pro calendário.
* * * * * *
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
2 comentários:
Dia do amigo ?Pra quê ? Amigo é todo dia ou não é. Semanas, meses, anos
pra quê ? A vida se repete com ou sem calendário pendurado na parede ou, mais modernamente, "clicado" no celular para andar mais depressa ? E por que tanta pressa ? Onde a humanidade pretende chegar ?
Ei !!! tenho que andar depressa, amiga, a hora já passou. Tiau.
Tenho muita preguiça desses dias todos do (a) ... O importante é viver intensamente, alegremente, prazeirosamente, todos os dias, horas e minutos com quem a gente ama!
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.