por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
A Izilda era uma menina alegre, faladeira e debochada, agitava o recreio com suas tiradas engraçadas e comentários mordazes do tipo metralhadora giratória. O nome da santa criança, então muito popular no interior paulista, felizmente não a impedia de imitar os professores pra nos fazer rir e animar a torcida em qualquer jogo. Queria cursar administração e trabalhar na grande fábrica de meias que era o orgulho da cidade.
Estudamos juntas uns três anos, e daí cada uma tomou o seu rumo. Tempos depois, numa tarde nublada, eu a vi num ponto de ônibus, com a barriga enorme e a expressão de desamparo, os olhos opacos, dos quais desciam lágrimas teimosas, que ela secava com as mãos. Trazia uma aliança no anelar esquerdo. Ainda não tínhamos chegado aos dezessete anos. Não me aproximei, ela nem me olhou, nunca mais nos vimos.
Para matricular os filhos na escola, era preciso declarar a profissão do pai. A da mãe era automaticamente preenchida como "do lar", sem mais. Mas a nossa mãe era professora, precisávamos retificar sempre. A profissão feminina mais disseminada, depois de empregada doméstica, junto com enfermeira e cabeleireira. Tudo o que as mulheres faziam para "ajudar o marido", ou mesmo para sustentar os filhos sozinhas, era desimportante e entrava na conta da obrigação, na base do quebra-galho. Cresci cercada de mulheres que davam um duro danado, submetidas e desvalorizadas, sem perspectiva de crescimento pessoal ou carreira. Menos ainda em plena ditadura militar, quando qualquer comportamento ou aspiração fora da caixinha era um baita risco, você não faz ideia.
Aos seis anos, a Leila curte ler livros de bichos e aventuras, visitar os avós e primos na Espanha e brincar com a irmã menor. Leva uma vida boa, de ir à escola e ter tempo livre. Adoro ver seu jeito leve e solto de criança cujo futuro se fará a seu tempo, sem muita pressão e ansiedade, filha de pais que escolheram descomplicar. No aniversário em que nos encontramos, há poucos dias, sua mãe nos contou da recente conversa da Leila: quer ser presidente da república. E o que você vai fazer como presidente? Dar todo o dinheiro do governo aos pobres, reciclar o lixo e limpar o planeta. Acordes iniciais da promissora, tanto quanto imprevisível, sinfonia da Leila.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
2 comentários:
Ate pouco tempo atras não havia, mesmo, espaço para a mulher na sociedade. A posição dela ( que posição ? ) já estava definida pelos conceitos e preconceitos. A luta pelo resgate dos direitos femininos apenas alterou a posição da mulher , trazendo em seu bojo mil e uma novas obrigações.Discussão infindável que se estenderá enquanto houver homens e mulheres.
Bjs da Mummy Dircim
Por esses tempos a HBO está exibindo uma serie feita no Brasil, Magnífica 70, que aborda, inclusive, a situação da mulher na sociedade durante o recente período de ditadura militar no Brasil. Vale a pena conferir, pois o que você expressou está estampado lá, sem dó nem piedade. Márcia Ester
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