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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Baiano voador


por Fernando Evangelista*

A conversa era daquelas banais.

– Moto é um troço perigoso – ele disse.

– E divertido – acrescentei.

Estávamos no meu carro. Eu dirigia, cruzando as avenidas do centro da cidade, e o pai, no banco do carona, relembrava a mobilete que havia me dado muitos anos antes.

– Aquele presente foi uma irresponsabilidade.

Foi aí que aconteceu. Lembro-me do pai gritando:

– Cuidado!

Tarde demais. Uma moto, dessas populares, furou o sinal vermelho e atingiu nosso carro. Para-choque e capô serviram de catapulta para lançar o motoqueiro pelos ares. Só que ele, por susto ou por reflexo, provavelmente pelos dois, não largou o guidão da moto. E isso fez com que ambos, o homem e sua moto, saíssem voando unidos pela avenida – ele plantando bananeira no ar, um salto de Cirque du Solei.

– Jesus! – eu disse.

O motoqueiro desabou sobre o capô de outro veículo que vinha ao nosso lado, destruindo o para-brisa. O som do vidro quebrando me tirou do choque e eu murmurei, talvez tenha só pensado:

– Morreu.

Saí do carro e fui até o motoqueiro, estatelado no asfalto:

– Tudo bem?

Pergunta cretina, mas eu queria saber se o homem estava vivo. Juntou um mundaréu de curiosos. E já havia gente, com celular em punho, batendo foto dos dois carros, da moto e do motoqueiro.

– Tudo bem? - insisti.

Ele tirou o capacete, coisa que não se deve fazer em caso de acidente e, quase com um sorriso de alívio, respondeu:

– Tudo em paz, meu rei.

Não havia dúvida, o motoqueiro voador era baiano. Pareceu-me muito simpático, apesar da circunstância e do jeitão que ele ficou no asfalto, deitado de banda, assim meio de lado, com uma perna esticada e outra flexionada, como um corredor de maratona visto de perfil. Negro, 20 e poucos anos, o homem tinha um quê de Lázaro Ramos.

A partir daí aconteceram coisas que, suponho, sejam possíveis só no Brasil: Uma senhora, gordinha e disposta, queria levantar o motoqueiro pelos braços para reposicioná-lo porque “assim deve estar muito desconfortável”. Alguém explicou que isso não se pode fazer, é preciso chamar os socorristas. Uma estudante, com saia e coque de antigamente, entregou um santinho de são Judas Tadeu para o homem deitado no meio da rua:

 – Este é o santo das causas impossíveis – ela disse. Tenha fé.

Foi juntando mais gente. Apareceu um que esbravejou contra a prefeitura, que não sinaliza direito os cruzamentos, outro falou que a prefeitura não tinha culpa no cartório, a culpa era dos motoqueiros irresponsáveis, que só fazem “trapalhada no trânsito”.

Um homem, aparentemente embriagado, argumentou que isso só iria melhorar quando fossem todos presos – políticos e motoqueiros, opinião que causou divergência entre o público. O bêbado queria colocar uma vela ao lado baiano. Eu o impedi:

– Vela para quê? O homem tá vivo!

A polícia chegou antes da ambulância – três policiais, em três motos diferentes. Meu pai explicou o que aconteceu, com muitos detalhes e alguns floreios. Sempre achei isso impressionante: ele não consegue – seja contar a história de um acidente de trânsito ou descascar uma vergamota – sem altas voltagens de entusiasmo.

Só então veio a ambulância.

– Eles estão chegando! – gritou uma mulher no ouvido do motoqueiro, como se ele fosse surdo. – Fica tranquilo. Não precisa entrar em pânico – mais gritos no ouvido.

Acionei o serviço de um guincho porque o meu carro não pegava. Antes da ambulância partir, o baiano me chamou, pediu meu telefone e entregou o seu cartão. Nome: Rodnei da Silva Santos. Profissão: Acrobata. E em letras bem grandes, na parte de baixo e de cima do cartão, o nome do circo: Grand Circo di Vitória da Conquista.

Parecia piada. O motoqueiro voador é um baiano acrobata. Conversamos um pouco e nos despedimos como dois velhos conhecidos.

Quando o guincho chegou, já sem plateia, pai e eu recolhemos os objetos que estavam no meu carro. Entre papeis de bala e extratos de banco, achei discos do Caetano, do Gil e um dos primeiros do João Gilberto, um livro de crônicas do João Ubaldo Ribeiro e outro do Ricardo Sangiovanni, um documentário, em DVD, sobre Glauber Rocha e, por último, um livro de memórias do meu tio Emanuel, irmão mais novo do meu pai.

Todos eles são baianos, com exceção do meu tio, que nasceu em Florianópolis, mas mora em Salvador e tem alma de baiano. O Glauber, para completar a coincidência – e isso só lembrei depois - nasceu em Vitória da Conquista, terra do motoqueiro voador.

Naquele instante, sem saber bem o motivo, fiquei feliz de conhecer a Bahia e de entender um pouquinho da sua grandeza.

 – Tudo bem? – perguntou-me o condutor do guincho.

Olhei para ele, sorri e respondi com aquela inconfundível musicalidade:

– Tudo em paz, meu rei.

* * * * * *

Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato

3 comentários:

Anônimo disse...

Texto maravilhoso. Parabéns ao autor. Eu também conheço a Bahia ( sou casada com um baiano) e sei que é uma terra abençoada pela arte, apesar das enormes e injustas desigualdades sociais. Não conhecia o Nota de Rodapé. Já coloquei nos favoritos. (Helena de Souza Maia).

Anônimo disse...

Gostei muito! E lembro bem desse dia...

Julio disse...

Captastes bem a alma baiana. Texto muito divertido. Parabéns.

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