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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

“Se estava na rua era bandido”. Era gari

Os documentos estavam no bolso, inclusive um holerite marcado com sangue. “Se estava na rua era bandido”, disseram os policiais que assassinaram o gari Edson Rogério, 29 anos, filho de Débora Maria da Silva que coordena o grupo Mães de Maio, que reúne mulheres que perderam os filhos na chacina de maio de 2006, chamado de “ataque do PCC (Primeiro Comando da Capital)” e que ganhou as telas recentemente com o filme "Salve Geral", indicação brasileira para tentar concorrer ao Oscar 2010. Foram quatro tiros em Edson, nove policiais envolvidos e o processo arquivado. A história do Gari é uma entre centenas que acontecerem entre 12 e 20 de maio de 2006, quando 564 pessoas foram assassinadas, quase 90% civis. Desse total, apenas 6% com antecedentes criminais. A maioria deles, jovens de baixa escolaridade. Essas mulheres e mães alegam que tiveram seus filhos assassinados por esquadrões da morte e pela polícia paulista. Considerando os números, mais gente morreu no período do que em toda a ditadura militar: 564 contra 424 nos anos de chumbo. Atualmente, 60% dos processos estão arquivados e as “Mães de Maio” exigem o desarquivamento dos crimes praticados. A repórter e colunista deste Nota de Rodapé, Andrea Dip, foi ouvir a história do maior trauma que uma mãe pode sofrer, a perda brutal de um filho. Edson não era bandido, era Gari e foi assassinado na mesma calçada que havia varrido pela manhã.

Como começou tudo?
O pai do meu menino morreu da mesma forma. Nós nunca descobrimos quem matou. O Rogério, meu filho, já trabalhava há sete anos em uma firma de limpeza urbana. Para tudo me pedia opinião. Era meu bebê. Nós compramos uma casinha no morro para ele morar e ele pegou um empréstimo no banco para comprar o piso e reformar. Um dia ele estava deitado no sofá e perguntei: “Você está feliz, filho?” E ele respondeu “Muito, mãe. Muito feliz”. Depois da casa ele comprou uma moto. Aí uns dias antes do que aconteceu ele teve de fazer uma cirurgia na boca, veio aqui e pediu “mãe faz um cozido pra mim, eu vou bater no liquidificador” por causa do dente. Ele operou no dia 10 de maio de 2006. Aí passou o dia das mães aqui comigo, fizeram um bolinho para mim porque tinha sido meu aniversario. Ele comeu um pedaço de carne, bateu no dente e começou a sangrar, acabou o dia para ele. Aí se deitou, tomou um remédio. Às seis da tarde as meninas o chamaram para cantar os parabéns para a mãe. E já estava na televisão aquela matança, a gente chorou também. Ele pegou um pouquinho de comida que a gente tinha dividido do churrasco. Tinha que trabalhar no dia seguinte porque não entregou o atestado com medo de ser mandado embora. Me pediu um beijo e foi embora. Foi o último dia que passei com o meu filho.

Ele foi assassinado no dia das mães?
No dia seguinte recebi um aviso de um policial amigo da família dizendo que era para as pessoas “de bem” não saírem na rua porque quem tivesse na rua era inimigo da polícia. Eu ligava para o celular do meu filho e não conseguia falar. E aquela dor no meu coração. Quando deu uma hora da tarde deu pane nos telefones, até hoje a gente não sabe o que aconteceu. A Telefônica nunca disse. Fui para o meio da rua, achava que estava ficando louca. Sentia um cheiro de carne com sangue no meu nariz me sufocando. Queria saber notícias do Rogério e não conseguia sair do lugar. Aquela agonia. Ele apareceu aqui atrás de um remédio, com muita dor de dente. “Filho, o que você está fazendo na rua, fica aqui, não sai”. Ele me pediu 10 reais para colocar gasolina na moto, pegou o remédio e foi embora.

Ele foi pego nesse momento...
No meio do caminho, segundo os frentistas do posto. Ele ia subir o morro e acabou a gasolina, ele até caiu da moto. Foi empurrando a moto até o posto. Os frentistas não quiseram vender a gasolina porque o posto estava fechado e estava cheio de câmera, aí ele pediu ajuda pra um amigo do morro e quando o amigo chegou no posto, chegaram três viaturas e uma Blazer. Não consegui dormir a noite toda. De manhã liguei o rádio e ouvi: “houve uma matança aqui na nossa região e 16 corpos estão no IML. Eu vou dar primeiro os nomes da nossa região”. Deu o primeiro, o segundo, o terceiro era o nome do meu filho. Comecei a gritar “mataram meu filho, mataram meu filho”. Liguei para o mercado perto da casa dele para saber se ele tinha ido comprar pão, ninguém sabia, ninguém falava nada. Minha filha tinha acabado de ganhar gêmeos, o peito dela até secou. Minha outra filha foi lá reconhecer, mas não deixaram ela entrar no IML porque eram muitos corpos, inclusive de uma moça grávida de nove meses que tinham matado também. As testemunhas contaram que o Rogério dizia para os policiais “mas eu sou trabalhador” e eles respondiam “Se morreu era bandido”.

Andrea Dip é jornalista e colunista do Nota de Rodapé.

4 comentários:

Lina disse...

Impossível não chorar. Não sentir um amargo na garganta.Não ter vergonha. Não questionar Deus. Não achar que tá tudo errado. Não ter medo da policia. Não me sentir também culpada. Impossível entender porque não são todos que querem uma sociedade diferente. Impossível. Mas eu agradeço por vc ter escrito. Não quero fingir que isso não existe, quero ajudar a mudar. Do "Tinha que trabalhar no dia seguinte porque não entregou o atestado com medo de ser mandado embora" ao “mas eu sou trabalhador” e eles respondiam “Se morreu era bandido”.
Lina Cavalcante

Guilherme disse...

Minha garganta secou...

sofia amaral disse...

parabéns, dea

Jéssica Santos disse...

É um depoimento que nos faz questionar tudo. Não devemos deixar essa história sumir, até hoje a maioria das pessoas acham que em maio de 2006 o PCC atacou a cidade e por isso tantas mortes. Quase ninguém questiona a atitude agressiva e vingativa da polícia que exterminou tanta gente.

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