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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 4 de março de 2010

Los de abajo pagam a conta dos de cima. Outra vez

Foi com pesar que recebi a informação de que a Cordilheira Branca, na região central do Peru, está degelando rapidamente. Não é o pesar da classe alta peruana, que perdeu o nevado Pastoruri, playground em potencial para que eles melhorassem o desempenho do país nas próximas Olimpíadas de Inverno (aliás, até as próximas, a seguir no ritmo atual, não haverá glacial para contar história: estive em Huaraz, Cordilheira Branca, em agosto de 2008, e não esperava receber tão já a notícia do degelo).
Também não é exatamente o pesar pela perda do turismo que, embora belíssimo, inigualável, e até respeitador da natureza, não tem o mesmo respeito por seus trabalhadores, que cruzam montanhas a cinco mil metros com mochilas de 40 quilos nas costas.
O pesar vem, em parte, pela certeza de que, sem os Andes, alguns dos rios mais caudalosos do mundo morrerão junto. Como bem lembrou o sociólogo peruano Roberto Espinoza em recente conversa que publiquei na página da Rede Brasil Atual, a água andina desemboca em Madre de Dios, que mais à frente responde pelo nome de Bacia Amazônica.
O que ele também lembrou, ainda que bem rapidamente, é que o povo andino paga por erros que não cometeu. É bem verdade que as multinacionais nunca encontraram, entre as autoridades e a burguesia de Peru, Bolívia e Equador, grande resistência a projetos de depredação. Também é verdade que essa minoria se beneficiou financeiramente do extrativismo – notório o caso de Simón Patiño, o rei do estanho, boliviano que chegou a ser um dos homens mais ricos do mundo.
Mas, no geral, qual a participação desses povos no aquecimento global, que agora lhes bate à porta cobrando um alto preço? Alguns dados para comparação. Nos Estados Unidos, em média, cada cidadão é responsável pela emissão de quase 20 toneladas de gás carbônico ao ano. Entre os países da União Européia, a média, grosso modo, fica entre seis e dez toneladas anuais. Os peruanos emitem, cada um, 1,08 tonelada. Os bolivianos, 0,75. Como era de se esperar, são níveis comparáveis às nações centro-americanas e a algumas africanas.
Sobre o caso boliviano, li há alguns meses no valente El Ciudadano, do Chile, o relato dos moradores de Khapi. Caro leitor, se há alguém que não tem culpa pelas mudanças climáticas, esse “alguém” é o povoadinho aimará aos pés do nevado Illimani. As 40 famílias locais, há bem pouco tempo, atribuíam o degelo à raiva que o Illimani tinha por algum erro que haviam cometido. De fato, havia (há) um erro, mas certamente não é o deles. Junto com o derretimento vieram a obrigatoriedade de mudar culturas agrícolas e o aumento de pragas que devastam a já frágil economia de Khapi. Quando se deram conta de que o erro não era deles e que não era bem o Illimani quem estava zangado, os moradores de Khapi passaram a procurar quem pague a conta dos estragos.
A reportagem de Javier Aliaga não se aprofunda no modo de vida daquele povoado aimará, mas é certamente como tantos outros na Bolívia e nos Andes peruanos: nada (ou quase nada) de artefatos eletrônicos, transporte nas próprias costas ou nas costas de animais de carga, agricultura de subsistência.
Apenas para jogar mais alguns números na discussão, o Censo de 2001 na Bolívia, último disponível, dá um panorama da falta de culpa daquele povo em relação ao aquecimento global. Em um universo de dois milhões de entrevistados, 250 mil têm carro ou algum outro veículo motorizado. Para que se tenha uma ideia, a média de um veículo para oito pessoas é quatro vezes menor que a paulistana, caso queiramos ficar no caso clássico de uma cidade em que o carro perdeu a função por não ter como andar. Seguindo na análise do Censo da Bolívia, uma em cada quatro pessoas tem refrigerador e uma em cada duas tem televisor, menos que o número de bolivianos que têm rádio.
Muita gente que vai à Bolívia volta falando de um país parado no tempo, “um povo atrasado”, na versão mais preconceituosa – como se fosse opção deles padecer de pobreza. O que essa observação deixa transparecer é que, no geral, está-se longe de se dar conta da inviabilidade do atual sistema e, ao se considerar o país pobre como atrasado, colocam-se Estados Unidos e seu modelo como alvo a ser alcançado, coletiva ou individualmente.
Obviamente, não se trata de querer que nos esqueçamos de eventuais benesses trazidas no meio do turbilhão de enganos do “desenvolvimento”. Ninguém anseia, por exemplo, que o sistema de saúde boliviano, sem estrutura tecnológica e com precária pesquisa, seja seguido mundialmente. Mas, com tudo isso em mente, é o caso de se perguntar: é justo que os andinos paguem por um conforto que jamais gozaram? Considerando que seus territórios já financiaram, com metal e hidrocarbonetos, boa parte do crescimento do Norte, crescimento esse que hoje resulta nos degelos que citamos acima, parece-me que não.

João Peres é jornalista e mantém a coluna Extremo Ocidente neste Nota de Rodapé.

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