Os "Indignados" espanhóis querem melhores condições de vida. E desde maio tomam as cidades do país em protesto. Nosso colunista, Ricardo Viel, esteve com eles em Salamanca e conta o que viu na praça principal da cidade.
Dezenas de objetos dos mais diversos tipos, entre eles uma TV, estão expostos no chão, sobre uma lona, mas é por um par de chuteiras um tanto quanto batidas que brilham os olhos já cansados de um senhor.
Ele pergunta ao garoto que cuida dos “produtos” o preço e não entende muito bem quando escuta que eles não estão à venda: “É um mercado de troca, se lhe interessa alguma coisa, traga algo que considere justo e troque pelo calçado”.
15-M: apartidários, desejam despertar a consciência do povo |
O estudante faz parte do movimento que tomou as ruas de Madri e depois do país todo no mês de maio. Os indignados, como ficaram conhecidos, se levantaram no dia 15 de maio de forma espontânea e pacífica. Depois da capital espanhola, o movimento se espalhou por todo o país e, por fim, ultrapassou as fronteiras.
O 15-M se diz apartidário e tem por objetivo despertar a consciência da população para os desmandos que a corrupção e o mau uso do dinheiro público vêm acarretando – a crise, para ser mais claro.
Os cartazes espalhados pela praça dão ideia do futuro que os indignados esperam. “Todos somos Islândia”, “O presente é de luta, o futuro nós o faremos”, “Nossos sonhos não cabem nas urnas”.
O mercado de troca faz parte das atividades que o 15-M vai desenvolver em Salamanca até domingo, quando levantam acampamento. Na quarta-feira, dia 21, o debate noturno foi sobre a reforma constitucional que colocará o pagamento da dívida como prioridade para a Espanha e impedirá “todas as administrações” de gastar mais do que arrecada.
Trata-se de uma imposição, que veio em forma de conselho, que França e Alemanha (os primos ricos da União Europeia) fizeram a todos os países do bloco. Os congressistas espanhóis foram os primeiros a aprovar a lei. Oposição e governo chegaram a um consenso de que a aprovação da reforma era o único modo de acalmar o mercado (parece que não funcionou muito).
Agora o 15-M tenta mobilizar a sociedade a forçar os políticos a aprovarem um referendo que colocaria nas mãos da população aprovar ou recusar a mudança, que deve representar um corte grande nos gastos sociais.
Os debates na praça seguem uma lógica simples, basta pedir a palavra e falar. As intervenções duram poucos minutos e há de tudo, inclusive quem agarra o microfone e se esquece do que pretendia dizer. A falta de trabalho (o desemprego chega a 20% da população e passa de 40% para os que tentam encontrar um primeiro trabalho), a corrupção e o temor de que o “milagre espanhol” se transforme em um pesadelo são os principais assuntos debatidos.
Mercado: um senhor entrega sua boina em troca de chuteiras |
Todas as intervenções terminam em aplauso, que varia de intensidade não só pelas palavras ditas, mas também, e principalmente, pela forma como é terminado o discurso.
Gonzalo Martin Pes, de 76 anos, precisa de poucos segundos para ser ovacionado. Sua fala é breve e teatral. “Um dia, um comediante conhecido da maioria de vocês, o genial Cantinflas, me disse: ´Gonzalo, venha, se não tiver comida para você, passaremos fome juntos´. Eu não sou tão fatalista, espero que ninguém passe fome, mas que tenha comida para todos”.
Em privado, Gonzalo me confessa que nunca conheceu Cantinflas e que a frase atribuída ao mexicano foi inventada. De qualquer maneira, o espetáculo na Plaza Mayor é bonito. Atraía muita gente, é respeitoso e democrático. A maioria dos que tomam o microfone são jovens que fazem parte do movimento, mas há de tudo, até os que se colocam contrários (e também são aplaudidos).
O debate termina sem uma conclusão, sem que se tirem propostas concretas. Esse é uma das críticas que se faz ao movimento. É fato, ninguém sabe ao certo até onde (e para onde) o 15-M irá.
“Eu não sou adivinho, não sei onde isso vai parar, mas digo que já fizeram muito”, me diz Gonzalo. Miguel Espigado, de 30 anos, membro do 15-M e um dos mais participativos no debate, está de acordo: “Não sabemos onde vai parar, mas dia 15 de outubro há uma marcha mundial até Bruxelas, para pressionar os governantes da União Europeia. Conseguimos levar mais de 100 mil pessoas a Madri, estaremos em Bruxelas, isso era impensável há poucos meses”.
Os descrentes criticam e dizem que o movimento não chegará a nenhum lugar. Os românticos confiam que a indignação dessa gente pode, sim, fazer uma grande mudança. Mas só o jornal La Gaceta, porta-voz da prefeitura, conseguiu ver o acampamento como um espetáculo que enfeia a cidade.
Minto, há mais alguém na praça que está contrariado com tudo aquilo. É Francisco Franco, que ao lado de figuras como Cervantes e os reis da Espanha, tem sua cara em uma das medalhas colocadas nos arcos da Plaza Mayor. Salamanca foi uma das primeiras cidades a cair na Guerra Civil e foi uma espécie de centro do franquismo durante o conflito.
Diferentemente das demais figuras, a do “general” encontra-se apagada de tanta limpeza. É que vez ou outra alguém resolve por jogar tinta na cara do ditador. Com a presença dos acampados, o risco de receber uma pintura só aumenta. Franco está contrariado com os indignados.
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Nota de Rodapé, atualmente em Salamanca, Espanha.
Um comentário:
Belo texto!
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