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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 19 de março de 2012

(quase) comido pelo ódio

“A dor define nossa vida toda”
(De uma canção de Caetano Veloso)

Iñaki tinha 19 anos e a cabeça cheia de sonhos quando seu pai foi assassinado com um tiro na nuca. Juan era um alto executivo da Telefónica, e a empresa, por ordem judicial, grampeara telefones de integrantes do grupo separatista ETA, o que levou à prisão alguns de seus líderes. Como represália, Juan foi sequestrado e 24h depois, seu corpo, sem vida, abandonado em um bosque.

A bala que acabou com a vida de Juan foi disparada na manhã do dia 23 de outubro de 1980 e tornou-se o divisor de águas da vida de seu filho. A partir de então e durante anos Iñaki conviveu com um sentimento que quase o quebrou, o ódio.

“Percebi que isso [odiar] estava contaminando as minhas relações pessoais e profissionais. Odiar é algo que consome, que cansa, porque você tem que odiar 24 horas por dia”, me contou. “E me dei conta de que o terrorismo não só havia matado meu pai, mas estava acabando também com a minha vida”.

A frase, não sei bem porque, ficou dando voltas na minha cabeça durante dias e dias depois de nossa conversa, publicada em janeiro deste ano numa reportagem para a revista Retrato do Brasil.

Por sorte, nunca tive motivos para odiar. O mais próximo que vivi do ódio foi seu contrário, o sentimento que, inutilmente, tentamos definir e que pode ser chamado de paixão ou amor (visceral). Amar também consome e pode ser esgotador. Quem tão bem falou disso foi João Cabral de Melo Neto, no poema “Os três Mal-Amados”, que começa assim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
Trocasse Iñaki amor por ódio e teria um poema feito à sua medida. Ele quase foi comido pelo ódio, mas foi salvo pelo amor (pode soar cafona, mas foi assim).

O amor pela mulher, pelas filhas e pelo lugar onde viveu a vida toda fez com que substituísse a ideia de revanche pela da negociação. Entrou para um grupo de vítimas do terrorismo basco e recentemente encontrou um ex-integrante do ETA, cara a cara. Escutou um pedido de perdão, aceitou o gesto e deixou na sala do presídio o último resíduo de ódio que havia em seu corpo.

Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.

3 comentários:

Fernanda Pompeu disse...

Ricardo, texto forte!
Foi importante a leitura.

Luciane Oliveira disse...

História linda em um texto lindo, mesmo quando a vida não é linda...

Anônimo disse...

Para perdoar numa situação dessa tem que ter odiado muito. Boa história, humana. Jaime Petres, SP.

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