Um homem que sai do barbeiro é reconhecido à distância. E por alguns dias tem de lidar com sua personalidade homogeneizada, qual um recruta do exército ou um menino de calças curtas, obrigado a acatar os gostos capilares da mãe.
Eu sempre odiei barbeiros por causa dessa mania de deixar todo mundo com a mesma cara de bom moço. Fossem os barbeiros arquitetos e todas as cidades se assemelhariam a condomínios de Alphaville. Um mundo limpinho, arrumadinho, porém desprovido de charme e de identidade própria.
Mas cheguei a tentar algumas vezes. Em geral em barbearias razoavelmente baratas, mas nem sempre. Certa vez, num lapso de insanidade e obviamente estimulado por uma mulher, fui a um desses salões caríssimos, onde todos vestiam quimonos. Me fizeram massagem, me lavaram a cabeça com xampus aromáticos de ervas desconhecidas, me deram revistas importadas pra eu apontar o penteado ideal, cortaram os cabelos com navalha e, no fim, o resultado foi a mesma bananice de sempre.
Por tudo isso, ao longo dos anos, me acostumei a entregar o cuidado das madeixas às mãos mais confiáveis do mundo: as da minha mãe. Geralmente escolho um domingo de sol, almoçamos juntos, ela coloca uma cadeira no jardim dos fundos, me cobre os ombros com uma toalha de mesa suja, e passamos meia hora na função barbearia, que quase sempre nos faz dar boas risadas.
Quase sempre, vejam bem. Porque há dias em que ela não está muito inspirada e me deixa longas antenas de comunicação intergaláctica atrás das orelhas. Em outros, tem arroubos de criatividade (“hoje vou começar pelo meio”) que nem sempre provocam resultados satisfatórios. Mas as risadas ficam mais raras mesmo quando Dona Helô não está com paciência pra coisa e quase me descasca o couro cabeludo com os dentes do pente. Nessas ocasiões, me vejo assombrado por uma imagem da infância: meu primo sangrando depois de ter um pedaço da orelha arrancado por uma tesourada de minha mãe. De qualquer forma, o resultado do corte caseiro invariavelmente supera o dos profissionais.
Mas, ultimamente, com compromissos de trabalho, o próximo livro que estou terminando pela terceira vez (e ainda devo terminar mais umas quatro) e esse trânsito da cidade que não anda, fica cada vez mais difícil me descambar até a casa da minha mãe. Então, semana passada, numa noite de insônia, olhei bem a minha própria cara no espelho, o canivete suíço que uso pra cortar unhas apoiado na janela, e lembrei do meu amigo Paulo.
Meu amigo Paulo compactua com meu desapreço por barbeiros. Tanto assim que, como me confidenciou certa vez, costuma cortar o próprio cabelo. A afirmação poderia ser de fato surpreendente, não houvesse sido produzida pelas cordas vocais do meu amigo Paulo.
Dou um exemplo, a título de explicação. Há algum tempo, fui visitar meu amigo Paulo numa noite de sábado. Sua namorada, a Nat, abriu a porta, me cumprimentou e voltou a lavar louças. Do segundo andar, vinha um agradável som de piano. “O Paulo está lá em cima, no piano, sobe lá”, disse a Nat, numa frase recheada com um agradável conforto doméstico.
Eu subi e topei com o meu amigo Paulo tocando, sem partitura, uma música que ele mesmo havia composto. “Eu nem sabia que você tocava, nem sabia que você compunha”, exclamei algo espantado. Ele disse que sim, vinha aprendendo piano sozinho e compunha nas horas vagas. Tinha algo como seiscentas (seiscentas!) músicas escritas.
Diante de surpresas como essa, convenhamos, não há como tomá-lo por referência. Ou, em outras palavras, se o meu amigo Paulo é capaz de cortar o próprio cabelo, não quer dizer que eu também o seja. E ainda por cima o cabelo dele é fino e liso, não duro e cheio como o meu, onde qualquer falha fica mais evidente.
Mas a insônia traz dessas insanidades. E eu comecei, com a tesourinha do canivete suíço (ah, se o MacGyver me visse...). Comecei pelo lado, acima da orelha. “É um trabalho pra se fazer com calma, dura algo como uma semana”, explicara meu amigo Paulo, agora promovido a guru capilar. Eu obedeci. Fui aos poucos. Tesouradas discretas e irregulares, pequenos tufos de cabelo lentamente deixando o conforto da cabeça para formar um ninho castanho no cesto de lixo do banheiro.
Naquela noite mesmo, terminei as laterais. Na manhã seguinte, talvez ainda encorajado pela falta de sono, retoquei o trabalho anterior e ataquei a parte de cima e da frente. Estava já mais seguro, confiante nas tesouradas. Cheguei a arriscar até umas aparadas atrás, mas aí não foi tão fácil.
Meu amigo Paulo diz que chegou a usar dois espelhos, operação que se mostrou complexa até para seu intelecto privilegiado. “Você nunca sabe pra onde está movendo a mão. É completamente aleatório. Você quer mexer pra trás, mas a tesoura vai, sei lá, pra direita.” Diante disso o que fez meu amigo Paulo? Cortou de olhos fechados.
Eu, como um marinheiro de primeira viagem, preferi pedir ajuda à Helena. Ela, a princípio, não quis arcar com a responsabilidade, mas eu ameacei cortar de olhos fechados e ela topou me agraciar com algumas tesouradas. Depois, no fim de semana, ainda dei uma passada na casa da mama pra uma aparadela final.
E o resultado? Bem, caros leitores, pode ser orgulho de criador diante da criatura, mas creio estar portando o melhor corte de cabelo dos meus trinta e um anos de vida. Curto, mas não muito, levemente repicado, discretamente caótico, revolto e másculo, sem qualquer indício de bananice. Ainda estou tentando me livrar dos fios que se espalharam por cada fresta do chão do banheiro, mas não importa. É um preço pequeno a se pagar por tamanha liberdade.
Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.
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