Ederaldo Gentil, falecido em março deste ano, é autor de clássicos do samba como “O ouro e a madeira”. Apesar da relevância de sua obra, seu nome é pouco celebrado por jornalistas musicais e sambistas.
O sambista brigou com a diretoria da Escola de Samba de seu coração. Triste, não escreveria o samba enredo na disputa no terreiro naquele ano. Suas melodias refinadas e suas letras carregadas de emoção encantavam a cidade e a perspectiva de um carnaval sem um samba dele na avenida incomodava os foliões. Mas ele estava decidido: não faria o samba. Não para a sua Escola.
Convites surgiram, então, de outras agremiações. Todos queriam contar com o talento daquele compositor para engalanar o desfile de Carnaval. Das dez Escolas de Samba que participavam da disputa, nove fizeram o convite. Ele aceitou a proposta de todas. Então, um fato inédito e histórico aconteceu: um compositor emplacou sambas enredo em quase todas as Escolas de Samba do grupo de elite. Somente a sua querida Escola não cantou um samba dele naquele ano.
No Carnaval de Salvador de 1970, quem venceu foi Ederaldo Gentil. Uma vitória triste, pois sua vontade era que apenas uma Escola de Samba lhe desse o devido valor: a Filhos do Tororó, que ele tanto amava.
O sambista baiano foi dos grandes. Autêntico, criou uma linhagem de samba alicerçado na tradição carioca, mas carregando traços do samba de roda, música genuinamente baiana. Foi gravado por nomes como Roberto Ribeiro, João Nogueira, Beth Carvalho, Noite Ilustrada, Jair Rodrigues e Elza Soares. Legou clássicos como “O ouro e a madeira”, onde canta os emblemáticos versos “o ouro afunda no mar, madeira fica por cima / ostra nasce do lodo, gerando pérolas finas”. Produziu uma obra consistente, registrada também por ele em três discos de carreira e quatro compactos simples.
Ao produzir e registrar sua expressão artística, Ederaldo Gentil escreveu seu capítulo no livro dourado de nossa música. Por conta disso, venceu. Mas assim como no Carnaval de 1970, foi uma vitória triste, já que, apesar da grandiosidade de sua obra, seu nome é pouco lembrado nas rodas de sambas do Brasil. Sua morte, em 30 de março deste ano, aos 64 anos, em decorrência de falência múltipla dos órgãos, passou praticamente incólume por jornalistas musicais e sambistas.
Da Filhos do Tororó
para o Brasil
Fosse exaltando a agremiação, fosse emplacando os sambas enredos na avenida, o que inspirava o jovem sambista era sua Escola de Samba Filhos do Tororó. Logo seus sambas romperiam barreiras: em 1967,aos 20 anos, venceu o Festival de Música da Prefeitura de Salvador, no Carnaval, com a música "Rio de lágrimas" (interpretada pela cantora Raquel Mendes). Neste mesmo Carnaval, sua Escola de coração também sai com um samba seu. O sambista já despontava no cenário do samba, ainda que em um ambiente ainda restrito ao universo carnavalesco e soteropolitano. No entanto, seu enorme talento, o levaria, em breve tempo, para voos mais altos.
No ano seguinte, volta a vencer o "Festival de Música da Prefeitura de Salvador", desta vez com o samba "Silêncio". O evento marca a reinauguração do Teatro Castro Alves e teve um júri presidido pelas sumidades baianas Dorival Caymmi e Jorge Amado, o que engrandeceu ainda mais a vitória de Ederaldo Gentil.
No final da década de 60 e começo da década de 70, começa a ter seus sambas gravados – o baiano Tião Motorista foi o primeiro, seguido por Jair de Oliveira. Em 1975, ganha projeção nacional depois da gravação de “O ouro e a madeira”, pelo Conjunto Nosso Samba. O sucesso leva o compositor a registrar, neste mesmo ano, seu primeiro LP, “Samba, canto livre de um povo”, pela gravadora paulista Chantecler.
No ano seguinte, pelo mesmo selo, grava o álbum “Pequenino”, disco que reuniu músicos do primeiro time de instrumentistas de samba, como João de Aquino, Waldir Silva, Altamiro Carrilho, Luna, Eliseu, Marçal, Jorginho, Pedro Sorongo, entre outros.
Seu terceiro e derradeiro álbum foi feito de forma independente, em 1983. “Identidade” trazia a força do samba de mesmo nome, que ironizava a condição social da maioria dos brasileiros: “05342635 é o meu número, o meu nome, minha identidade / Mínimo salário é o meu ordenado, 12 horas de trabalho, que felicidade, que felicidade”.
A partir daí, o sambista passou a lutar contra a irreversível transformação que houve com a cena musical baiana. Na terra de Caymmi, o “samba da minha terra” perdeu cada vez mais espaço para ritmos como o axé music, que, hoje, domina o Carnaval local. Vencido e desmotivado, entregou os pontos, se afastando do cenário musical brasileiro.
Disco em homenagem ao baiano |
Infelizmente, tal celebração foi um ato isolado e o nome de Ederaldo Gentil logo voltaria a ser esquecido, mesmo entre os sambistas. Desestimulado, sem forças para lutar, o sambista baiano passou seus últimos anos de vida recluso, morando com a irmã, Denise Gentil, afastado da vida cultural baiana, tão descaracterizada nos dias atuais, tão diferente daqueles tempos em que a cidade ainda cantava sambas no Carnaval. Hoje, ele é lembrança. Foi o sambista, ficaram as pérolas finas.
Escute o samba “Identidade”, de Ederaldo Gentil,
na voz do compositor:
André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês. Ilustração de Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, especial para o texto
Um comentário:
Valeu Kino! Baita trabalho!
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