Atualmente residente no Brasil, onde desenvolve um projeto com Fernando Meirelles e trabalha na sequencia da série “Nada Tenho de Meu” (exibida pelo Canal Brasil), Miguel conversou com o NR sobre a experiência de ter convivido por quatro anos com o autor de Ensaio Sobre a Cegueira. Diz que ter passado esse período ao lado de Saramago e Pilar del Río mudou sua maneira de encarar a vida.
Nota de Rodapé – No documentário que você fez fica evidente que Saramago era quase um "pop-star". Era idolatrado por onde passava. Por que acha que ele atingiu esse status tão raro para um escritor, ainda mais de língua portuguesa?
Miguel Gonçalves Mendes – Acho que por várias razões. Primeiro, porque Saramago é um dos autores que mais pode ser reconhecido nos seus livros. Ou seja, o narrador e muitas vezes a trama mesmo são o próprio Saramago ou a sua visão do mundo. Por outro lado ele nunca se demitiu de agir. Como ele dizia, o trabalho de um escritor é obviamente escrever, mas também intervir na sociedade. Penso que Saramago várias vezes deu voz àqueles que não a tem. E por último, e talvez o principal, a qualidade incrível da sua obra que, exatamente por isso, é universal.
Nota de Rodapé – Portugal, e a Europa como um todo atravessam hoje uma crise profunda, e não parece haver saída. Saramago era um intelectual que não se furtava de opinar, alertar e convocar as pessoas a se rebelarem. Faltam intelectuais como ele em um momento como esse?
MGM – Penso que não faltam intelectuais, o que falta é que estes mesmos intelectuais não tenham medo. Assumam e lutem pelas suas condições. Nenhum ser humano se pode demitir das suas obrigações enquanto cidadão, algo que muitas vezes esquecemos. E a nossa obrigação base é contribuir para o bem comum. O que se passa na Europa é exatamente o oposto: o fim da solidariedade, o fim do respeito, o fim da crença no outro e o inicio de um discurso xenófobo e racista. Ora, ninguém no seu perfeito juízo lutara para defender esta Europa, e o que é lamentável é que se ponha em causa um dos projetos mais utópicos e bonitos da civilização ocidental. Países que reconheciam necessitar dos outros para melhorar o bem estar de todos...
NR – Vejo as pessoas muito desesperançadas e resignadas aqui na Europa. Há um fatalismo rondando a cabeça de todos, não há?
MGM – O que é triste é que não sabemos o que se seguirá e talvez o que segue sejam bem pior para todos. E quando digo todos, refiro-me ao mundo. Bem ou mal a Europa era um farol no que toca aos direitos pelos quais toda a humanidade lutou e o seu fim só poderá ser ruim para todos nós.
NR – Você conviveu quatro anos com Saramago, conheceu sua intimidade e acabou por tornar-se amigo dele. Além do documentário, o que guardou desse período?
MGM – Eu agradeço à vida por ter-me dado a possibilidade de conhecer uma mente brilhante como a de Saramago e poder construir uma relação de amizade com ele. O meu objetivo na vida é sentir que a vivo de uma forma plena, e tê-los conhecido (Saramago e Pilar) contribuiu em muito para atingir esse meu objetivo. Tê-los conhecido mudou efetivamente a minha vida, e fez-me perceber que não há tempo a perder. Esta é a única oportunidade que nós temos e como tal não podemos perder tempo a chorar ou a dizer que o mundo é horrível. Se é horrível é levantar as mangas e mudá-lo. Como Saramago dizia: não tenhas pressa e não percas tempo.
Miguel Gonçalves Mendes lançou recentemente, pela Companhia das Letras, um livro de entrevistas com Saramago e Pilar del Río.
Ricardo Viel, colunista do NR, também publica hoje no Valor Econômico um especial sobre os 90 anos do escritor português.
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