Há 13.505 dias o mundo era outro. Por exemplo, as Bienais de São Paulo ainda eram importantes. No 25 de outubro de 1975, um sábado, eu fui até o Ibirapuera. Na época, quando São Google nem sonhava em nascer, eu tinha uma reverência ao evento Bienal. De fato, na de 1975, foi possível ver alguma coisa da novidadeira instalação de vídeo-arte e entrar numa maloca indígena – reproduzida em tamanho natural.
Tenho a impressão que chovia. Digo impressão, pois 37 anos são 37 anos. A tinta da memória, igual a das canetas sem uso, também seca. Mas eu guardei esse dia não por causa da Bienal, mas por conta do que soube ao cair da tarde. Cheguei em casa e meu pai, entre solene e preocupado, disse: "Olha, mataram um jornalista da TV Cultura. Vai ter mobilização."
2.
Domingo. Acho que continuava chovendo. Lembro que meu pai e eu fomos para o velório do jornalista no Hospital Albert Einstein. Hospital tão afamado quanto hoje é o Sírio-Libanês. O clima, a indignação das pessoas nem preciso descrever. Havia também o danado medo. Entre os presentes circulavam homens de terno e gravata fotografando. "Agentes do Dops" – sussurrávamos.
Mas ninguém arredou pé. Sabíamos que tínhamos que ficar onde estávamos. Entre os ilustres, o arcebispo Dom Paulo Arns e o senador Franco Montoro. Até aquele dia eu não fazia ideia de quem era Vladimir Herzog. Mas sabia que a ditadura torturava e matava muito gente. E aquele cara, estendido no caixão, não havia se suicidado.
3.
O enterro foi no Cemitério Israelita do Butantã. Mais longe do que é hoje. Lembro de uma estradinha de terra (será?). E, é claro, da grande comoção. Eu assisti a tudo de um lugar alto. Choros. Rápidos e compungidos discursos da Ruth Escobar (ninguém fala mais dela) e de Audálio Dantas – então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A sensação era que desta vez haveria uma resposta. Acho que isso estava escrito na cara de todo mundo: "Não vamos deixar barato."
4.
No 31 de outubro, ocorreu a grande concentração na Praça da Sé. Desafiando o aparato repressivo, e graças ao trabalho dos estudantes da USP, PUC, GV e do Sindicato dos Jornalistas, mais de cinco mil pessoas estavam em frente à Catedral da Sé. Lá dentro se desenrolava uma missa-ato ecumênico (ou quase isso, pois não convidaram uma mãe de santo). Representando os católicos, os corajosos dons Paulo Evaristo Arns e Helder Câmera. Os judeus contaram com o rabino Henry Sobel. Em nome dos protestantes, o pastor James Wrigth.
Mas tudo isso foi muito mais. Hoje sabemos que o protesto contra o assassinato do cidadão Vlado, 38 anos, foi um punhal certeiro no coração da ditadura militar. Toda tirania, minhas amigas e amigos, um dia tem seu fim.
fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.
Um comentário:
Eu costumava frequentar o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, sob a presidência do Audálio. O próprio Audálio foi um dos responsáveis para que aquilo não ficasse "barato". O Vladimir não era ligado a partido algum, apenas um humanista. Isso, incomodava aquela terrível ditadura militar, implantada em 1964. Infelizmente, foram a partir de perdas desse quilate, que a milicada pegou o seu quepe e se retirou. Xô, truculentos!
Otávio Martins.
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