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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A janela

Há pouco para se ver da janela do meu quarto, além de um muro enfeitado com plantas trepadeiras, um obstáculo monótono que não me permite enxergar mais que umas janelas aqui e ali, quase sempre trancadas, o topo dos telhados das casas agrupadas e uma porção minúscula de céu. Muito pouco para minhas pretensões bisbilhoteiras. Sim, desde pequeno tenho verve fofoqueira; assumo. Como se morasse dentro de mim uma mulher velha e solitária, sentada há horas na varanda de casa em sua cadeira de vime, onde se dedica à eterna vocação de estar atenta a qualquer movimento da rua.

Por causa da visão desprivilegiada, uso os ouvidos. Pego no sono embalado pelo barulho da água corrente da criação de carpas do vizinho. Queria tanto um dia poder ver as carpas!

Foi numa dessas, mais exatamente na tarde do último feriado de 15 de novembro, enquanto trabalhava, que acompanhei a briga mais ferrada dos últimos tempos na Vila Romana, dessas que são lembradas pra sempre. Os gritos da mulher me arrepiavam. Incrível como grito de mulher assusta. Quando percebi que era mesmo coisa séria, larguei do computador e fui à janela para não correr o risco de perder nenhum detalhe. Mas essa briga de casal já tinha chegado no estágio em que o marido, um tanto arrependido por alguma bobagem que fez, tenta acalmar a esposa, que está em prantos, indignada, ameaçando romper definitivamente. Já o marido falava baixo. Vim saber, tempo depois, que era caso de agressão. No quarto da frente, o Cabelo, que mora comigo, também acompanhava a briga. Vimos de camarote a aproximação das viaturas, os dois na calçada; a mulher, mais calma, calada e descabelada; o marido, igual, com cara de bobo perdido, ouvia os policiais, balançando a cabeça pra cima e pra baixo, como um cachorro acompanhando o movimento dos talheres; pra cima e pra baixo; sim, senhor; até os policiais voltarem pras viaturas e sumirem, sob os olhares do povo janeleiro. Não ouvi falar mais no assunto. Deve ter ficado por isso mesmo.

Nesse mesmo feriado, que pra muita gente emendou com o do dia 20, teve mais duas brigas que eu acompanhei do meu quarto, enquanto corrigia envelopes intermináveis de provas da escola. Uma na casa do bebê recém-nascido: foi filho da puta pra tudo que é lado, uma gritaria terrível, portas batendo, criança chorando. A outra foi na casa do Alemão: que ele não pagava nenhuma conta, que não ajudava em nada, não trabalhava há quatro meses; e tudo isso ela gritava não para ele, mas para o bairro, porque tem certeza de que aqui no bairro o que não falta é gente querendo saber da vida dos outros; um escândalo.

Obrigadas a ficar em casa por causa do feriado, as famílias brigam. Lembrei-me de uma crônica em que eu narro a dificuldade que enfrentamos, eu mais quatro amigos, pra alugar esta casa. Os corretores queriam uma família, com marido, esposa, filhos. República?... Ah, república o proprietário não quer, porque tem as festas, o barulho...

Visitamos um prédio em que, logo no saguão, demos de cara com uma plaquinha, alertando: “Este é um prédio de família”. Nem subimos pra ver o apartamento. Famílias: briguem à vontade. Gritem. Xinguem. Só não chamem a polícia pra acabar com as nossas festas. Minha nova família, composta por cinco jovens, e uma infinidade de agregados, também tem direito de fazer o seu barulho de vez em quando.


Carlos Conte, sociólogo e cronista, estreia hoje a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto

5 comentários:

Anônimo disse...

Carlos, como sempre, perfeita! Gosto demais de ler o teu olhar...
beijos
bel

AngeloMundy disse...

demais, carlão! parabéns.
E eu tô de acordo!
aqui no apartamento debaixo do meu, uma menina coloca um som eletrônico bem baixinho, mas por algum motivo fica batendo estaca no meu quarto. Acho que é só pq a caixa tá encostada na parede, e aí reverbera pra cá.
lembrei também de quando morava no largo da batata, com o Uirá, e uma máquina de lavar do vizinho de baixo estava com problema na correia... Ela gritava agudo, um agudo quase inaudível, mas meus tímpanos transmitiam um arrepio enorme pela espinha. Depois que comecei a reclamar, o barulho sempre parecia ser pior... Até que um dia finalmente consertaram a porra da correia.
Incrível como tem umas sutilezas que podem incomodar muito, e o que é óbvio, evidente, é censurado previamente. O incômodo é imprevisível, e a gente precisa aprender a lidar com ele encarando a necessidade do diálogo, da conversa, da negociação. Afinal, tanto família quanto vizinhança, tanto bairro quanto cidade, tanto casal quanto amigo, é tudo forma diferente da mesma coisa: convivência!
abração

Anônimo disse...

É... a pirotecnia familiar que faz da vida privada vida pública!

Anônimo disse...

Parabéns pela iniciativa...
Ler seus textos só não é melhor do que ouvi-los.
Muito boa crônica, como sempre!

Ricardo Carneiro e Silva disse...

Carlão, dahora. adorei a crônica! li como se estivesse escutando o ritmo de sua leitura. muito bom cara. vc podia algum dia postar aquela q vc leu sobre o jack kerouac, foi fantástica aquela leitura.
valeu

ricardo silva

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