A fuga das galinhas do Parque da Água Branca, na esquina da movimentada av. Francisco Matarazzo com a ministro Godoy é das observâncias mais inusitadas. De uns tempos pra cá faço um novo caminho diário ao ir e voltar do metrô Barra Funda: desço a ministro Godoy, cruzo a faixa de pedestres pela Matarazzo e pego, em seguida, após correr os olhos por uma banca de jornal e ver as manchetes de algum periódico, uma ruazinha estreita que vai desembocar defronte a estação, a poucos passos do exuberante Memorial da América Latina.
Nesse itinerário tenho me deparado diariamente, não sem espanto, com motobóis sem paciência e carros sem amor buzinando para galos e galinhas radicais e seus pintinhos emancipados que arriscam suas cristas e penas ao atravessar fora da faixa de pedestres.
Isso mesmo! Galos e galinhas que se aventuram no asfalto em busca de um mix de farelos qualquer. Os bichos, sem medo, retrucam às buzinadas; galos, principalmente, empostando seu canto alto e vigoroso. É um tal de Fom! Fom, Beep Beep e Có coró cóóó de dar inveja ao silêncio, que ali não tem espaço.
Pois outro dia a mamãe galinha e dois rebentos estavam a cacarejar com regateios solenes, com seus movimentos pescoçais ritmados em meio ao já citado ruído nauseante. Fotografei com o celular. Não deu boa foto. Pensei, oras, que a cena tem é de ser vista a olhos vivos, sem imagens ou registros que inibam a imaginação, sempre mais interessante (ou quase sempre) do que a realidade.
O Água Branca, para situar, é nome do bairro, localizado no distrito da Barra Funda, mas que oficialmente leva o nome do homem que o concebeu, Fernando Costa, secretário de agricultura no longínquo ano de 1929, data em que se iniciou uma grande crise na economia mundial, devido à quebra da Bolsa de valores dos Estado Unidos. Quando inaugurado em 2 de junho daquele ano, o objetivo era abrigar exposições e provas zootécnicas.
Hoje o lugar é patrimônio cultural, histórico, arquitetônico, turístico, tecnológico e paisagístico do Estado. Além desses títulos, o que mais importa é o que nele vive: além da farta (e cada vez mais rara) natureza e dos galos e galinhas que gostam de aventurar-se no além-parque, os outros bichos que vale a confraternização são os macacos, gatos, cavalos, patos, pavão, peixes e, claro, alguns espécimes de zumanos em busca de respiro. O lugar tem um certo ar de nostalgia, meio outro tempo.
Nos meus encontros com as aves, uma galinha em especial – de penas escuras – que já vi por mais vezes a saçaricar entre os andantes sempre ignora meu “boa tarde” com uma corrida meio trotada em direção oposta. Ela, a quem apelidei de Mafalda, não é de dar atenção fácil pra ninguém. O guardador de carros que fica no pedaço é dos poucos que oferece um rango farelístico sem que ela fuja.
Fico a imaginar, por pura curiosidade, aquela São Paulo mais antiga e rural que não vivenciei, com seus transeuntes ternados e chapelados, quando por essas bandas existia mais terra batida do que asfalto e mais horizonte, que ofuscado, dorme atrás dos edifícios.
*jornalista, Thiago Domenici é editor e coordenador do NR
5 comentários:
Adorei. Quero conhecer a Mafalda. Júnia Puglia
Júnia venha se hospedar uns dias em casa e verás muito mais que a Mafalda! :) Beijos, Thiago
grande thiago, adoro o lugar. quando eu gravava no parque para o canal futura, insistia com a turma pra deixar o som dos pavões e perus atrapalhando um pouco o audio. como o auau dos cachorrinhos nas entrevistas do mondo vino. acho o máximo esses sons resistindo na megalopolização... abração, ruy
Ruy, querido, que honra sua visita e leitura. Tô podendo viu! Também acho o máximo esses sons, mostra que há alguma resistência. Bração, Thiago
Thiagão,
Ótima história. Ótimo texto.
Abração
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