por Ricardo Sangiovanni*
Fernanda despendurou-se debaixo do sol quente para a aula experimental – aquela primeira grátis – do Pilates. Que hoje ela volta cheia de dor pelo corpo, apostei; voltou foi com dor de cabeça.
Quem dera fosse só o sol: é que desabara-lhe sobre a moleira uma tarde inteirinha de pedradas sobre a nova (a tardia) lei que reconhece plenos direitos trabalhistas às empregadas domésticas no Brasil. Arte das coleguinhas de academia: meia dúzia de dondocas esguias, que aproveitavam o convescote vespertino – oh sucedâneo do chá-das-cinco – para matraquear sobre o que seria agora da vida, oh deus, após a lei temerária.
“Elas já são péssimas: comem horrores, roubam, quebram tudo”, rasgou uma das meninas, feito dissertasse sobre uma espécie de homo sub sapiens a quem agora acharam de dar direitos. “Certeza que vão fazer corpo mole, minha filha, só para ganhar hora extra. Pode escrever.”
Outra ajuntou: “Já tive uma – e dizia como recordasse uma velha mula – que inventou de fazer dieta. Gastava um dinheiro danado só de salada pra ela. Vê se pode…”
“Ah, menina, pior é a minha, que é diabética. Tenho que comprar Molico para dar a ela, vocês acreditam?”, alardeou uma terceira coleguinha, para pasmo geral.
No tocante às babás para os pimpolhos pequenos, unanimidade: com essas não se deve ralhar jamais, porque “é reclamar, que no outro dia elas vão e descontam no filho da gente”. A tática é tratá-las com sorrisinho para cá, bombonzinho para lá e, ao primeiro vacilo, demita-se: melhor cortar o mal pela raiz. “Mas, e agora, como é que vai ficar com esse negócio de aviso prévio?” Silêncio. Vivem-se dias de verdadeira incerteza.
Adoraria prosseguir, caro leitor, bisbilhotando as preocupações com o futuro dessas mulheres distintas. Mas não, porque não fui eu, foi Fernanda quem presenciou a cena; não pude escolher meus detalhes. Ademais, seria desmoralizante para o cronista semanal encher o espaço inteiro da crônica com uma história que não se lhe tenha dado à vista – ainda que ele, evidentemente, muito confie nos olhos e ouvidos de sua amada.
***
Ágil então, sem perder o fio da meada, devo pensar em algo interessante que dizer a vocês sobre essa grita toda em torno da bendita lei.
De saída: discutir sobre essa história de que família não é empresa, não dá lucro, então não tem que pagar direitos trabalhistas integrais, vocês me desculpem, mas aí me recuso.
Poderia, pretendendo ser persuasivo, dizer que na Europa, há já uns bons pares de décadas, ninguém mais lava os panos de bunda de ninguém – senão, evidentemente, em troca de gordíssima paga. A quem prefere por parâmetro os Estados Unidos, daria liga invocar a legião de sertanejos que já fez a vida – comprou casa ajardinada, carrão do ano, passagem para Disneylândia e muito frango frito com bacon e pasta de amendoim para os filhotes parrudos – lavando privada na América.
Ou quem sabe devesse empreender um sermão mais agressivo, e então exortar cada qual a tomar vergonha na cara e passar de uma vez a buscar o próprio copo d’água, a varrer o chão em que pisa, a cozinhar ou comprar congelada a comida que come. A lavar as próprias cuecas, arear panelas e esfregar lodinhos de ralo, passar a escovinha na privada para tirar o grude. Para não falar em arranjar um diabo de tempo na vida para cuidar dos próprios filhos. E, com sorte, a aprender a extrair disso tudo genuíno prazer (quando nada alguma dignidade) por não ter que delegar a ninguém, a troco de uma miséria, os desconfortos da existência.
Mas novamente me esquivo – o amigo leitor perdoará – de escrever coisas assim. Nem tanto pela falta de originalidade, mas porque é sobremaneira humilhante para o cidadão que batalhou, leu o quanto pôde, estudou a vida inteira para forjar-se um cronista semanal tolerável, flagrar a si mesmo esvaindo-se em lições de moral a seus leitores, essa gente criada, adulta, esclarecida.
Qual nada: sou só um cronista semanal, não tenho obrigação nenhuma de pensar em nada por ninguém, tampouco de nada afirmar. Vou mais é me limitar, só para completar a crônica, à velha artimanha da justaposição de semelhanças. Cai bem, dá menos trabalho e, de quebra, evito que me acusem de simplório, de moralista.
***
E então recordo-lhes certo 1888, quando anunciou-se certa lei que aboliria a partir de 13 de Maio certa escravidão em certo país por vossas mercês sabido. Viviam-se – bem mais que esses nossos, ma non troppo – dias de verdadeira incerteza.
Previa-se o caos. Dizia-se que abolir a escravidão representaria prejuízo sem precedentes para as finanças nacionais.
E foi um tal de senhor libertando escravo semanas antes da entrada em vigor da lei, para posar de benfeitor, inspirar gratidão. Um tal de senhor prometendo que ia sim “conceder” a liberdade… mas só no Natal. Para não falar naqueles que, desesperados, amarraram os recém-ex-escravos de volta no tronco e desceram-lhe a ripa, tentando desesperadamente preservar sua condição senhorial.
Preservar a condição senhorial: eis o fundamento de todos os medos. Um jornal até escreveu assim: “Risque-se dos dicionários e nunca mais se profira a palavra escravo. Conserve-se a palavra senhor, porque exprime um tratamento decente que se dá ao cidadão…” Questionava-se o absurdo: será que de fato “a extinção do elemento servil realmente significava que cabia a todos o pleno exercício da liberdade”? As elites estavam empenhadas em “fazer transbordar para a sociedade pós-abolição as regras sociais do mundo escravista”.
E assim quis-se, em nosso Brasil brasileiro, o impossível: extinguir o escravo sem extinguir o senhor. “Corria-se o risco de ver riscada da gramática das relações sociais, junto com a palavra escravo, a condição senhorial dos homens brancos, construída por séculos com tanta eficiência. (…) A certeza de que o mundo social não podia mais ser definido pela oposição entre senhores e escravos comprometia vínculos pessoais e referências de autoridade – não só relações de trabalho.” Quem conta é a historiadora Wlamyra Albuquerque, em seu ótimo “O Jogo da Dissimulação”.
Haverá quem diga que isso tudo é passado, que hoje os tempos são outros, que o Brasil mudou. Pois: estão aí os dados, cada um sabe de si, que pense como bem quiser. Eu, na condição de cronista semanal, só lhes posso assegurar uma coisa: àquele Pilates, Fernanda não volta mais.
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. Imagem de abre da agência GettyImages
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