por Thiago Domenici ilustração Caco Bressane*
São oito da manhã de uma sexta-feira de abril. Àquela hora já passaram pela plataforma de embarque do metrô Palmeiras-Barra Funda, no sentido Corinthians-Itaquera, algumas milhares de pessoas. Na minha distração sonolenta, observando o vai e vem de uma escada rolante, o trem se aproximava. No mesmo momento, senti um solavanco leve nas costas.
Na esquiva instintiva, virei e topei um cego e seu cão-guia. Dei licença o mais rápido que pude, enquanto os dois, bem jovens, se falavam apressadamente sobre o destino. “Direita, para a plataforma de embarque”, pediu o rapaz, roupa social esportiva bem cortada. A cadela, uma beleza de labradora de pelo curto caramelo o olhava de soslaio como quem diz, “eu sei chefe, mas isso aqui tá uma bagunça”.
Com sua coleira adaptada para a situação, ela decifrou o caminho com seu jeitão apaixonante. O vagão lotou em segundos assim que a porta se abriu. Uma senhora pequena dessas com cara de avó, já sentada na cadeira azul clarinha – das que são reservadas por lei para idosos, grávidas, mulheres com crianças de colo e pessoas com deficiência – ficou confusa com aquele rapaz que, de surpresa, surgia com uma cachorra diante dela.
Após um vai não vai de segundos, ele solicitou com gentileza que ela sentasse na cadeira imediatamente ao lado, ao que foi atendido com um sorriso largo, benevolente, que diz tanta coisa sem dizer em verbo. Não tinha capricho nenhum naquele pedido, mas uma questão simples: quanto mais perto da saída, menos enrosco.
Acomodados, ele sacou do bolso um petisco que a cadela engoliu num piscar de olhos. Em seguida, ele fuçou um celular com teclado que puxou do bolso, colocou fones de ouvido brancos e se confortou ao som de alguma música que se iniciava. Na ligeireza habitué, o metrô corria pela estação Santa Cecília, a segunda da linha vermelha, a partir do nosso ponto de partida. Eu os observava de perto, num misto de admiração e encantamento.
Jogada no chão com seu focinho rente ao assoalho, ali no meio da passagem, com ar clássico de cachorro que deixa a gente babando e com vontade de fazer uma carícia, as pessoas desviavam de sua dócil cabeça, enquanto ela acompanhava com olhar de pouca importância.
Desci na estação República e os dois seguiram em frente. A cena ficou em mim. Coincidentemente, eu havia lido na Folha de S. Paulo no dia anterior um texto que dizia das dificuldades dos deficientes visuais em conseguir um anjo de quatro patas. Logo, conclui sem esforço, que a batalha foi árdua para aqueles dois estarem no metrô naquele dia.
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De fato, somente 80 deficientes visuais têm cães-guia no país, num universo que, segundo o IBGE, passa dos 2 milhões. É uma dificuldade atender a demanda de quem deseja um companheiro de quatro patas. Primeiro, por ser muito custosa a formação e treinamento, em média entre 20 e 40 mil reais fora do país. E a maioria dos bichos vem justamente do exterior, principalmente dos EUA, pois aqui, diz a matéria da FSP, a formação esbarra “na falta de boas linhagens e treinamento correto”. Do que pesquisei, posso dizer que o trabalho de quem busca dar conformo ao deficiente visual por meio de um companheiro cão é louvável. As iniciativas, como em tantas outras questões que merecem atenção pública, vem dos particulares que se organizam.
Também é recente (de 2005) a Lei que “Dispõe sobre o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia.” Ou seja, todo restaurante, shopping, teatro, supermercado, casa noturna e meio de transporte não pode negar acesso sob risco de multa.
Mas o que significa ter um cão-guia? A parte do fato de ajudar o cego a desviar de obstáculos, atravessar a rua com segurança, encontrar caminhos mais simples e dar, sobretudo, autonomia e liberdade, o bichano faz companhia – é amor que se constrói –, traz aprendizado e desperta sorrisos gratuitos.
Outra vantagem é em relação à bengala, pois o cão-guia ajuda a desviar de objetos que estão acima do chão. Um deficiente visual, numa declaração que pesquei na internet, explica que com a bengala ele tem domínio de um metro e meio à frente o que torna mais difícil perceber um orelhão ou um galho de árvore, por exemplo.
Paciência na fila de espera de uma ONG por tempo indeterminado, ou tentar comprar o cão em outro país é, por enquanto, o principal caminho. Essa espera, no entanto, no Instituto IRIS – De Responsabilidade e Inclusão Social, chega a 4 mil pessoas, todas na expectativa de voltar a enxergar pelos olhos de um cão.
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E AOS INTERESSADOS: o site do Instituto IRIS, entidade sem fins lucrativos, fundada em 2002 em São Paulo, das poucas que trabalha na formação de cães-guia, traz mais detalhes sobre o assunto. A sua fundadora, a advogada Thays Martinez, também deficiente visual, contou sua experiência com o cão-guia Bóris no livro - e áudio livro - "Minha vida com Bóris". Bóris (que já faleceu) em 2004 foi o pioneiro ao abrir caminho na Justiça para deficientes visuais terem o direito de entrar no Metrô de São Paulo.
Além do IRIS, outro projeto, Cão Guia Brasil, treina cães para guiar pessoas com deficiência visual. E a escola de Cães Guia, Helen Keller, também está na rede. Para saber mais sobre deficiência visual vale se informar na Fundação Dorina Nowill para cegos.
*Thiago Domenici, jornalista, é editor e coordenador do Nota de Rodapé. Ilustração de Caco Bressane, arquiteto e ilustrador, especial para o texto
Um comentário:
Parabéns amigo, excelente texto! Utilidade pública! Já atendi inclusive em consultório um desses 80 deficientes visuais brasileiros com seu cão-guia, bichinho mais educado e comportado que muitas das crianças que atendo no dia a dia! Abs! Dr. Rino.
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