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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Meu amigo moçambicano


por Carlos Conte     ilustração Marcelo Martins Ferreira*

Outro dia, enquanto lia o “Conto de Escola”, de Machado de Assis, e discorria sobre o dilema ético da história, um aluno me perguntou se alguma vez já colei ou recebi cola. Dizer o que para crianças de 12 anos? Ainda mais quando se é professor de uma disciplina chamada Orientação de Estudos, cujo objetivo deveria ser ensinar técnicas, ferramentas de estudo, não a cola. Sorri ao me lembrar do provérbio aprendido na adolescência: “Quem não cola não sai da escola”. Nada de “contaminar” os meninos!, pensei. Mas ao mesmo tempo, lembrei-me do Filipe, meu amigo moçambicano da época da faculdade, e resolvi contar-lhes sobre a minha última cola.

Filipe estava terminando o intercâmbio na Faculdade de Economia da USP. Nós nos conhecemos no curso de Estatística do IME, obrigatório para economistas e aspirantes a cientistas sociais, como eu. Sempre o via na fila da monitoria, antes do início das aulas do período noturno, e logo nos identificamos: ambos odiávamos as aulas de Estatística. Eu, na verdade, porque não entendia patavina, e minha primeira reação diante daquilo que não entendo é detestar. Já o Filipe se saía melhor com os números, mas pelo fato de estar cursando simultaneamente cinco disciplinas – as cinco disciplinas do seu último semestre de intercâmbio –, não tinha muito tempo para se dedicar a cada uma delas.

Graças ao Filipe, tirei cinco na primeira prova. Nossas sessões de estudo na cantina, à base de Coca-Cola e esfirra de calabresa, tinham funcionado. Filipe tirou sete. Mas poucos colegas tinham conseguido ficar acima da média, confirmando a má fama dos professores do IME de serem os maiores carrascos do campus. Todos estávamos no mesmo barco – cientistas sociais, economistas. Todos deveríamos passar pela dura provação que era convencer os professores de Estatística de que tínhamos aprendido minimante sua disciplina.

Filipe, então, deu uma sumida. Começou até a faltar nas aulas, o que não era comum. Não o via mais nos plantões para tirar dúvidas, nem na cantina para estudar. Um dia ele apareceu no samba da Biologia: estava uma pilha de nervos. Nas vésperas da segunda prova, ele acumulava muitas faltas e ainda nem tinha começado a estudar. Compreensível, porque cursava, além dessa, mais quatro disciplinas na Economia e por isso não lhe sobrava tempo. Mas o pior de tudo, confessou-me virando a cerveja, era que não poderia nem pensar em ir mal nesse segundo exame; seu pai o trucidaria! Isso porque não poderia fazer a terceira prova (uma última oportunidade para os que não atingiram a média), que seria aplicada em meados de dezembro, época em que Filipe já deveria estar em Maputo, onde seria padrinho do casamento da irmã. Seu pai já havia inclusive comprado a passagem.

Impossível, mesmo para o bom matemático que era o Filipe, pegar a matéria em poucos dias. Eu vinha me matando há semanas para aquela segunda prova. Pedi-lhe calma. Pensaríamos numa saída. Comprei meia dúzia de fichas de cerveja. Filipe já estava caindo na cachaça. Seria uma tragédia familiar caso tivesse que ficar em São Paulo para fazer a terceira prova! Para sempre seria lembrado como o padrinho relapso, o irmão desnaturado. A solução emergiu do estudante malandro que um dia já fui, mas que ainda vive meio escondido no meu âmago. Cola! Ora, Filipe, uma medida emergencial para uma situação desesperadora. Ninguém vai ficar sabendo, meu chapa. Um dia escreverei uma crônica sobre isso, mas prometo que mudo seu nome.

No dia da prova, fingindo estar resfriado, deixei um rolo de papel higiênico em cima da mesa. À minha direita, duas carteiras ao lado (porque o professor exigia que uma carteira ficasse vazia entre nós), estava Filipe, aparentemente concentrado. Meia hora depois, o sinal: deixei a caneta cair no chão. Filipe desatou a tossir e espirrar (que atuação!), a ponto de ficar vermelho. Educadamente, levantei-me e lhe passei o papel para assoar o nariz. As respostas estavam numa folha amassada dentro do rolo. Com essa cola, punha em risco minha nota, meus créditos, minha vida acadêmica.

Valeu a pena ver a felicidade de Filipe uma semana depois, quando chegou o resultado. Sete e meio! Desce meia dúzia de Brahma! Prometeu-me nunca mais se esquecer do meu ato de generosidade e que, se um dia for a Maputo, me receberia na sua casa e me levaria aos melhores lugares da cidade. Eu, seu amigo brasileiro. Filipe, meu amigo moçambicano. Disse aos meus alunos, para encerrar, que a cola é uma prática condenável, reprovável (e todo esse papo aranha que a gente ouve desde pequeno...), mas que em alguns casos, só em alguns casos!, ela se justifica.


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*Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Marcelo Martins Ferreira, design e músico, especial para o texto

Um comentário:

Unknown disse...

Excelente!

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