por Carlos Conte ilustração Marcelo Martins Ferreira*
Aproveitando a tranquilidade da tarde de sábado, levei a cadeira de praia para o quintal da frente e abri um livro. Notei, entre uma página e outra, que um grupo de meninos curtia o dia de sol brincando no terraço da casa da frente. Não jogavam futebol nem empinavam pipa. Talvez já tivessem esgotado o rol de brincadeiras possíveis e, sem ter mais o que fazer, começaram a me importunar.
Do outro lado da rua, gritaram:
– Tio, ô tio!...
Ainda não me acostumei com essa história de ser chamado de “tio” por moleques de 10 anos de idade. Não faz muito tempo, eu que chamava os mais velhos de “tio”, e até hoje, carinhosamente, trato de “tia” a Ivani do bar da Rua Aurélia, e ela me chama carinhosamente de “teacher”.
Mas não era com carinho que os moleques me chamavam de “tio”. Empoleirados no terraço do vizinho, uns três ou quatro metros acima do nível da calçada, eles acabavam de eleger o alvo de suas brincadeiras.
– Tio, ô tio!...
Ora, tenho apenas 28! Tio é a mãe! O que esses moleques estavam pensando?... – Olha pra cá, tio! Olha pra cá!...
Claro que eu não olhava. Não lhes daria esse prazer. Além do mais, não estava a fim de papo. Só queria ler e ficar em paz. Por isso optei pela estratégia tão usada para acalmar ânimos infantis: não dar corda.
Mas a indiferença não funcionou. O coro, que começou baixo, foi ganhando força. Eram quatro, cinco, seis – não sei ao certo quantos meninos, porque evitava olhar diretamente para eles, demonstrando que eu nem me importava. Meia dúzia de moleques que decidiram tirar o sossego do meu sábado.
Quanto mais os ignorava, mais insistentes ficavam. Ah, crianças! Pobres crianças... Uma hora dessas, os pais deviam estar largados no sofá, em frente à TV, comemorando silenciosamente a tranquilidade temporária que o filho e os amiguinhos lhes davam. Mas à custa de quem?
– Ô tio! Olha pra gente! Ô do bigode!
Decidi que não olharia, em hipótese alguma. Pronto! Caísse a árvore da rua, caísse o mundo, não faria a vontade deles. Discretamente, por cima do livro, arrisquei uma olhadela: estavam todos voltados para mim, alguns debruçados perigosamente no parapeito. E confesso que, por alguns instantes, não que tenha desejado o pior, mas cheguei a imaginar como seria se o pior acontecesse. Daquela altura, do terraço até o chão... Um grito agudo, um crânio rachado, sangue escorrendo pela calçada em direção ao meio-fio, tragédia na Vila Romana... Mas afastei rapidamente esses pensamentos malignos da minha cabeça. Ora, os pais que se preocupassem com a segurança dos filhos!
– Ô do bigode! Não vai olhar? Fala alguma coisa, pô!
Não, não queria falar. Só queria ler... E pra isso precisava de silêncio. Com crianças por perto, eu sabia, seria difícil. Aliás, um dos motivos de eu ter me esquivado até hoje da ideia de ter um filho é justamente este: a encheção de saco. Sei que algum dia vai dar vontade. Sei que filhos, apesar de todas as dúvidas, é melhor tê-los. E sei que algum dia voltarei a pensar nesse assunto. Por enquanto, não. Só quero ler meus livros e beber com os amigos. Nada de filhos. Já me basta a semana na escola lidando com os filhos dos outros. Sábado não!
– Ô tio! Ô do bigode!...
Bom, nem preciso dizer que a essa altura minha concentração tinha ido pras cucuias e, quando me preparava para jogar a toalha, levantar acampamento e me instalar no quintal dos fundos, veio a primeira ofensa:
– Fala alguma coisa, veado! Ô veado!...
Em seguida, completaram:
– É veado e maconheiro!
– Veado, maconheiro e careca!
E o coro de impropérios, cada vez mais alto e teimoso, encontrou seus melhores adjetivos: careca, veado e maconheiro. Ofensas infantis, eu pensei. Mas ofensas infantis somente pelo fato de serem proferidas por crianças, pois na verdade não têm nada de infantis. Fosse mulher, talvez emendassem “puta”. Fosse negro, “crioulo”, “tição”. Fosse pobre, “mendigo”, “fracassado”, “fodido”. Ficava, então, sendo velho, pela calvície, além de veado e maconheiro, por terem encontrado algum motivo na minha aparência, ou quem sabe na má fama da minha casa, para me chamar de veado e maconheiro. Registrei todas as injúrias na folha de rosto do livro que estava lendo e, ao me ver escrevendo, um dos moleques gritou:
– Já sei: ele tá escrevendo um livro. Vai postar no facebook, no site dos idiotas... Era a gota d’água: “Site dos idiotas?!”. Esses moleques mereciam uma surra, isso sim. Tinha ficado na moita até agora, sem reagir, feito adulto. Mas já fui moleque um dia. Um moleque nervoso, de estopim curto, como diz minha tia. Os palavrões me subiram, fervendo. Os piores nomes que conheço!
Mas não deu tempo. Já estava com as quatro pedras na mão, quando anunciaram a retirada: – V’ambora, gente. Ele é surdo, deixa ele em paz...
Um a um, foram se afastando do parapeito e saíram do terraço, atrás de outra coisa para brincar.
* * * * * *
*Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Marcelo Martins Ferreira, design e músico, especial para o texto
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