por Ricardo Sangiovanni*
Não foi pouquinho tempo – foram anos e anos da vida que Jorge Martins passou fazendo o sinal da cruz daquela maneira.
Não fora por invenção sua, senão por exortação de certo frei mestre de gramática da criançada lá de sua saudosa Guimarães – ai de mim, Guimarãezinha… – onde dom Afonso Henriques primeiro declarou existência aos Portugais.
Chamava-se o homem Álvaro de Monção, ele recordava. Era esse o nome do homem que havia sessenta anos pouco mais ou menos persuadira-lhe a si e ao restante dos putos que o certo era que se benzessem d’outro jeito.
Alegava o dito cujo que “no credo dizemos Filium ejus, et qui sedet ad dexteram Patris, e que David, no seu salmo diz dixit dominus domino meo sede adexteris mieis, e no símbolo de Atanaseu, sedet dexteram dei Patris, e noutros versos da Igreja, qui sedes adexteram miserere nobis”.
Para então sustentar, a si e aos miúdos, persuasivo feito só mesmo Satanás havia de ser, que o certo não era descer com a mão da cabeça até o peito na hora de falar “em nome do Filho”. Pois se o Filho, conforme comprovavam as escrituras, sentava-se à direita do Pai, mais fiel então seria levar a mão da cabeça ao ombro direito: In nomine Patris, et Filis…
De sorte que, desde que ouvira tal ensinamento, Jorge Martins passara a fazer o sinal da cruz daquele jeito, em forma de roda, indo primeiro da cabeça ao ombro direito, depois ao centro do peito, e dali ao ombro esquerdo, amen.
E assim o fizera desde sempre, seguro por mais de cinquenta anos, em Portugal e depois também quando veio para a Vila de São Jorge, que ajudou a levantar na capitania dos Ilhéus.
Só largou o costume há bem uns cinco anos, quando, já espreitando a morte, resolveu averiguar se aquilo fosse porventura pecado, e então uns padres disseram-lhe que tomasse tendência e passasse a se benzer normal, igual a todos os cristãos, que era o melhor que fazia.
E a quem a esta altura já esteja pensando tratar-se de anedota inventada, que trate de consultar a confissão de cujo homem ao Santo Ofício, no tempo da graça em que a todos os pecados se absolvia, em data de 3 de agosto, ano 1591.
Só o que me atrevo a afirmar é que, mesmo absolvido, Jorge Martins jamais deixou de temer, por todos os dias até o dia de sua morte, que nem sua confissão, nem seu arrependimento, nem nada pudesse ser suficiente para salvar-lhe a alma do inferno. Pois que absolvição de padre bastaria, contra toda uma vida vivida em pecado?
Jamais também deixou de pensar na desgraça que, àquela altura, já teria sombreado (ou que haveria de sombrear ainda) a vida de seus coleguinhas das aulas de gramática, aquela boa e ora já velha malta de Guimarães – ai de mim, Guimarãezinha…
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*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
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