por Cidinha da Silva
Estava a pensar sobre as conexões entre a perseguição aos rolezinhos, vinda de tantos lados, e a postura de certos críticos à reabertura e revitalização do cine Belas Artes, na esquina da Consolação com Paulista.
Há décadas experimentamos o incremento da chamada política de gentrificação, que expurga as pessoas pobres do centro das cidades, das áreas nobres de interesse da especulação imobiliária para periferias, cada vez mais distantes. Por acaso nos esquecemos dos incêndios aparentemente involuntários que consomem favelas e seus moradores, estação seca após estação seca, e em seu lugar, logo depois são erguidos prédios suntuosos ou estacionamentos gigantescos para carros particulares?
Nessas periferias, a vida tem renascido, é de onde brotarão as soluções para o mundo, segundo o que dizia o professor Milton Santos. Mas, essa vida cultural que se reinventa e que, em alguma medida despreza o centro, produzindo em locais periféricos da cidade de São Paulo um movimento de contra-fluxo, ou seja, de gente do centro que vai curtir a periferia (de carro, lógico, prescindindo do transporte público da região), não responde aos anseios de todos os que vivem lá, notadamente dos meninos e meninas da geração digital-shopping.
Se fizermos uma breve panorâmica dos equipamentos culturais das periferias de São Paulo, veremos que a moçada dos rolezinhos não freqüenta com regularidade os CEUs, saraus, Centros Comunitários de Juventude, Fábricas de Cultura, bibliotecas públicas e/ou comunitárias, rede SESC, teatros e casas de cultura. Esses espaços não lhes dão respostas e, por sua vez, os bailes funk que os agrega, eram perseguidos pelos policiais reformados que geriam as sub-prefeituras e continuam a sê-lo pela polícia, hoje.
Contudo, aos empresários e suas diversas ações de coibição ao rolezinhos, às práticas policialescas de criminalização de jovens que querem apenas o direito de ir e vir, de circular livremente por parte da cidade (os shoppings), à justiça e sua indústria de liminares que proíbem esse tipo particular de encontro de jovens na área dos shoppings somam-se os intelectuais orgânicos das periferias. Estes, desejosos de que esses meninos e meninas frequentem os locais de resistência cultural da periferia.
Esses mesmos intelectuais criticam o apoio dado pela prefeitura para recuperar o cine Belas Artes, alegando que ele é patrimônio apenas da classe média e do povo cult que circula pela Paulista. Eu mesma nunca fui cult, não tenho origem na classe média e sempre gostei muito de arte, tudo assim, superposto, e frequentei assiduamente o Belas Artes e entristeci quando foi fechado.
O Belas Artes em São Paulo, como o Nazaré, o Pathé e o Palladium, em Belo Horizonte, marcaram a minha juventude, de alguém que morava a 40 kilômetros do centro de BH e saía de casa para ir ao cinema ou ficava na rua, porque não havia tempo para ir em casa e voltar fresca a tempo de pegar o início da sessão de cinema.
No Nazaré, assisti Boys in the rude que, como outros filmes do circuito não-comercial permaneciam uma mísera semana em cartaz. No Palladim assisti Blade Runner, clássico hi-tech dos anos 80 e no Pathé, por quatro ou 5 vezes, naquele tempo em que ao fim de uma sessão podia-se permanecer na sala para assistir a próxima, vi Sonhos, de Akira Kurosawa. No Belas Artes, além de ter acesso a filmes africanos pela primeira vez na vida, vi Faça a coisa certa, de Spike Lee, que só chegou em Belo Horizonte dois ou três meses depois e ficou em cartaz durante uma semaninha no cine Nazaré.
A política de confinamento nas periferias das grandes cidades tem muitas faces, algumas inusitadas, e o direito a usufruir da cidade vai do rolezinho nos shoppings (periféricos e centrais) aos filmes do Belas Artes, agora com intervenções da prefeitura para a criação de programas escolares, de barateamento de ingressos para facilitar a circulação de trabalhadores assalariados pela boa programação do cinema.
É certo que muita gente da Angélica e da Paulista dirá que o Belas Artes não é mais o mesmo, que agora é frequentado por uma gente diferenciada. Oxalá seja mesmo assim. Que o pessoal do outro lado da ponte possa exercitar o direito pleno de fruir pela cidade.
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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.
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