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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 1 de abril de 2014

O fetiche Moleskine


por Tomás Chiaverini*

O Moleskine é um caderninho simples, originalmente preto, com páginas creme, marcador de tecido e um elástico, geralmente também preto, que o mantém fechado. Por sua simplicidade clássica, é um objeto bonito de se olhar. O Moleskine é também muito mais do que isso. É um fetiche. Carrega em si algo além da matéria que o constitui. O fetiche do Moleskine está intimamente ligado ao fato de ele ter sido o caderno de anotações de estrelas da intelectualidade como Van Gogh e Hemingway. Um Moleskine pequeno custa cerca de sessenta reais. Um caderninho idêntico, mas sem a marca do fetiche, custa cerca de vinte. Durante anos, tomei nota numa imitação de Moleskine pela qual não paguei nada, ganhei de brinde de um fábrica de móveis.

O nome da fábrica vinha escrito na capa, mas eu risquei com uma caneta preta e ficou quase imperceptível. Quase. Apesar da forma similar, apesar de cumprir os propósitos de guardar minhas ideias, meu caderninho carecia de fetiche. Ao longo do tempo, lutei com todas as minhas forças racionais para ignorar essa deficiência e segui tomando notas no brinde da fábrica de móveis. Considero ter juntado algumas ideias valiosas lá dentro.

Até que outro dia, flanando pela livraria Cultura, topei com uma estante só de Moleskines, e imediatamente o sorriso do capital se abriu para mim. Ele sempre dá um jeito, isso é certo. Os homens poderiam muito bem ser separados entre aqueles que vivem mergulhados na miséria e aqueles que, cedo ou tarde, se verão seduzidos pelo sorriso perolado do capital.

Contas pagas, poucas dívidas, cartão de crédito em níveis aceitáveis, e aquele caderninho ali, exalando seu fetiche esculpido através dos séculos... E o que, afinal, são sessenta reais diluídos em anos, o que são sessenta reais diante da possibilidade de ter a criatividade anabolizada por páginas dotadas de tanto charme e história? Comprei o tal Moleskine. Vermelho, só pra ser diferente. Sentei num canto, tirei o plástico e dei uma folheada. Bom papel, boa encadernação, bom formato. Nada que valha sessenta reais, mas o que importa é que o fetiche está lá. E funciona. Enquanto folheava meu primeiro Moleskine, senti uma imediata urgência de anotar algo.

Desgraçadamente, não tive nenhuma ideia que valesse a honra de inaugurar a sequência de genialidades que certamente preencheriam meu futuro companheiro de glórias literárias.

Sem mais a fazer, dei uma última folheada e notei que por dentro da contracapa há um charmoso bolso de papel com laterais de tecido. Lá de dentro puxei um folhetinho dobrado em sanfona. O mesmo texto se repetia em várias línguas. Li o primeiro, em inglês. Contava a história do caderno, que tinha nascido numa lojinha em Paris há mais de duzentos anos, falava dos intelectuais que o utilizaram para criar coisas tão fantásticas, e de como aquele objeto estava fadado a encerrar as mais luminares ideias da espécie Homo sapiens.

Enfim, estavam lá, preto no branco, todos os componentes do fetiche Moleskine. Uma explicação que se pretendia poética e afetuosa mas que me causou o efeito contrário. De alguma forma, ao gabar-se das próprias conquistas, meu caderninho inanimado destruía sua própria aura, como um correspondente de guerra que vai tomar chopp com os amigos usando botas de combate e colete cáqui.

Ao evidenciar de forma tão despudorada que vendia fetiche, que vendia o sonho de um dia ser Hemingway ou de que ao escrever ali as pessoas misteriosamente se aproximavam daquelas figuras míticas, o Moleskine moderno deixa claro que você é apenas mais um mortal em meio a centenas de milhões de aspirantes a intelectuais. E que caderninho nenhum vai te transformar no gênio que você não é.

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Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.

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