Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.
(Episódio 7)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Faz uns dias que o general Olympio Mourão Filho anda pisando duro nas ideias. Pôs todo o quartel em prontidão. Ontem fez uma preleção para as tropas: Vamos lutar pelo Brasil contra o comunismo! Só os fracos e frouxos assistem à comunização da nossa pátria sem pegar em armas. Nós, o exército brasileiro, vamos cortar as nove cabeças da Hydra vermelha. Ele seguiu falando muito e bonito.
Quando eu era menino, lá em Curvelo, conheci um comunista de carne e osso. Era amigo do meu avô. Sapateiro como ele. Chama-se Tonho e residia em Niterói. Acho que ainda reside. Porque se ele tivesse morrido, meu avó teria comentado. Certo verão, Tonho foi de visita na casa do meu avô, passou uns dias. Eu tinha meio medo dele. Pois minha professora, irmã Angelina, dizia que comunista comia criancinhas.
Mas o Tonho não me comeu. Ao contrário, foi simpático. Dedicou um pouco de sua atenção para mim. De noite, apontou no céu estrelas. Disse até o nome de algumas delas. Fiquei confuso com um comunista que gostava de estrelas. Depois, memória que adormece, me esqueci completamente do amigo do meu avô.
Agora voltei a lembrar dele por conta do general Mourão Filho. Fico imaginando quantos Tonhos vamos ter que enfrentar no Rio de Janeiro. Pois é para lá que a tropa está indo. Os tanques de guerra já fazem manobras no pátio. Desta vez, a coisa é séria. O Jango está com as horas contadas.
Eu mesmo nunca fui com a cara do presidente. Nem concordo com essa história de reforma agrária. Onde já se viu tirar a terra dos outros? Cada qual com o seu qual. O mundo sempre teve ricos e pobres. Brancos e negros. Mulheres e homens. Deus escreveu um destino para todos eles. Os pobres ficarão ricos no reino do Senhor. Os ricos vão prestar contas tintim por tintim. Os negros têm talento para servir, para praticar trabalhos braçais ou miúdos. As mulheres nasceram para engravidar da espécie e serem companheiras dos homens.
Nós, os homens, nascemos para proteger as mulheres e comandar as mudanças do mundo. Desconfio que estamos marchando para ajeitar as coisas. Para recolocar o que foi tirado do lugar. Os comunas gostam de bagunça. Enfiam bobagens na cabeça dos jovens e dos trabalhadores. Os sindicalistas também são o diabo. Querem fazer greve toda semana.
Trinta e um de março de 1964, lembrei que é aniversário da minha mãe. Dona Regina, a maior cozinheira das Minas Gerais. Uma mulher corajosa. Suportou os berros do meu avô até se casar com o meu pai. Depois teve que aguentar a violência de papai quando bebia. Mas ela nunca disse um ai, um ui. Dona Regina sabe que quando nascemos nossa vida inteira já está escrita. Depois da morte, Deus na certa vai explicar porque disso, porque daquilo outro.
Quando a revolução acabar, tenho que arranjar um jeito de escrever uma cartinha para minha mãe. Acredito que ela ficará orgulhosa deste filho que luta para que tudo siga em ordem. Cuida para que o mundo gire do mesmo jeitinho com que sempre girou. Galinhas põem ovos, garanhões cobrem éguas, o sol nasce e morre todos os dias. Vamos nessa, meu general!
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
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