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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Coisinhas que nos fazem

1964 + 50 
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 13)


por Fernanda Pompeu  ilustração Fernando Carvall

Em 11 de junho de 2006, os restos mortais de Iara Iavelberg foram retirados do setor dos suicidas do Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo. Vitória da família e dos amigos que nunca acreditaram na versão - dada pelos órgãos de segurança - de que Iara teria se matado ao perceber o cerco policial no apartamento onde morava, no bairro de Pituba, Salvador. Sua morte ocorreu em 20 de agosto de 1971.

Além do oficial, há outros relatos, inclusive de um sargento envolvido diretamente na operação, que indicam que Iara Iavelberg foi na verdade baleada sem nenhuma chance de defesa. Considerando o modus operandi da repressão da época, provavelmente a moça, então com 27 anos, foi mesmo assassinada. Quero dizer, os caras entraram fuzilando. Matar e depois perguntar.

A biografia política de Iara é bastante conhecida. Ele foi militante da Polop (Política Operária); VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares); VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e, finalmente, integrou o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Também viveu um romance com Carlos Lamarca, assassinado três meses depois do cerco ao apartamento em Pituba.

Todas essas informações podem ser consultadas no vigoroso Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964 - 1985). O livro foi organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e pelo IEVE - Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado. A primeira página vem assinada por Aloysio Nunes, participante da luta armada e vice atual do candidato a presidente Aécio Neves.

Mas, pela natureza do trabalho do Dossiê, os perfis são um tanto secos. Por conta disso, fiquei surpresa e feliz ao ler a entrevista da professora e pesquisadora Ecléa Bosi - dada a Mariluce Moura, revista Pesquisa Fapesp de abril de 2014. Ecléa é autora de vários importantes livros, entre eles, o delicioso Memória e Sociedade - Lembranças de velhos.

Pois na entrevista, parágrafos tantos, ela rememora a presença de Iara Iavelberg na Faculdade de Psicologia da USP: "Fui colega de classe da Iara, o que me marcou muito. Lembro-me da colega como uma moça muito bonita, muito inteligente e que cantava muito bem. Gostava de Ponteio, de Edu Lobo, também de Disparada, de Vandré. Era muito boa em estatística (...) e íamos à casa dela estudar. A Iara histórica todos lembram, mas foi a perda da colega que acompanhei e vi o quanto nossa turma sofreu com isso."

Ao ler essa passagem, minha cabeça fez plim! Pensei que talvez seja isso que falte - os detalhes, as preferências musicais, a maneira de sorrir - aos biografados mortos e desaparecidos sob a ditadura militar. Saber das pequenas coisas revela a humanidade dos personagens. Trazem eles para mais perto de nós. A ditadura não matou só ideias, matou principalmente pessoas. Então a jovem morta em Pituba gostava da canção Ponteio, letra de José Carlos Capinan, e vencedora do mítico Festival de Música da Record em 1967.

"Parado no meio do mundo / Senti chegar meu momento / Olhei pro mundo e nem via / Nem sombra, nem sol / Nem vento. Quem me dera agora / Eu tivesse a viola / Prá cantar. Jogaram a viola no mundo / Mas fui lá no fundo buscar / Se eu tomo a viola / Ponteio / Meu canto não posso parar /. Talvez, nesta manhã invernosa de 2014, Iara Iavelberg esteja cantando esses versos em alguma nuvem.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

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