por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Voltando da escola a pé, eu observava alguns itens específicos. Onde havia frutas maduras que pudessem ser apanhadas sem problemas, goiabas, mangas, mixiricas, e se havia algum monte de areia novo, disponível para ser atacado nas minguadas horas de folga entre aulas e deveres de casa. Eles surgiam e desapareciam ao ritmo das construções e reformas das casas do bairro. Muitas obras eram largadas pelo meio e a areia ficava ali, na calçada, ao deus-dará. Mesmo assim, acontecia de o pessoal da casa ficar de olho para que ninguém tocasse nela, muito menos crianças em busca de diversão, sempre vistas com má vontade.
Às vezes dava certo. Era com enorme prazer que eu subia na areia e começava a cavoucá-la com as mãos. Pegar um bom tanto e soltá-lo entre os dedos era uma prévia indispensável para as tentativas de construir toscos cones com uns buracos como portas e janelas, os meus castelos. Depois de pronto o cone, respingar água por cima, para não despencar tudo em seguida, o que sempre acontecia. Refazer também era parte do jogo. E se repetia a mágica da areia que podia virar qualquer coisa e depois se desfazia, e eu refazia.
São muitos e surrados os simbolismos associados à areia, velhíssima cúmplice na representação do tempo e da vida. Nos últimos dias, estou tentando acomodar aqui dentro a morte de uma pessoa querida, que vivia bem longe daqui. Era dessas com brilho nos olhos, que traziam luz, alegria e um bom solavanco de generosidade e sabedoria a quem tivesse a sorte de conhecê-la e pudesse deixar a indiferença de lado. Uma doença terrível plantou nela a semente mortífera, que, apesar das muitas tentativas de eliminação, decidiu resistir e ganhou o jogo. Seu corpo, embalagem já obsoleta, foi, a seu pedido, doado a uma universidade para servir como instrumento de pesquisa na busca por mais vida para outros humanos. Na forma mais direta e simples, bem como ela viveu e agiu.
Vejo-a tentando conter o punhado de areia com as mãos bem fechadas, sabendo que ela vai acabar escapando e se espalhando por todo lado. Não um saibro grosso de construção, mas aquela fina areia colorida de beira de rio, com que se montam paisagens em garrafas e quadros vendidos nos mercados populares. Vital e cheia de energia. O vento fará o seu trabalho.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
4 comentários:
Esse é o jogo da vida.Construir castelos e sonhos, na areia ou na rocha,e, com o tempo, vê-los escoar dedos afora, levados pelos ventos . Sim, o vento esculpe areia e rochas; nada há insensível ao perpassar dos solavancos qie o viver nos traz. Importa reconstruir, se der tempo. Um dia será tarde.
Excelente sua crônica de hoje. Leva-nos meditar na grandeza de alma daqueles que sabem construir, em meio às sacudidelas da carruagem que passa, uma vida digna e cheia de bons propósitos com os de sua amiga.Que Deus nos guarde para que, enfrentando o dia-a-dia, saibamos usar de sabedoria para executar os planos sonhados e sobreviver com dignidade ao vento que leva a areia.
Um beijo da
Mummy Dircim
Da areia viemos e à areia retornaremos
JU, LINDA A SUA HOMENAGEM A ESSA PESSOA QUE FOI TÃO ESPECIAL, QUE DEIXOU SUA BENDITA MARCA NESTAS PLAGAS...
Sua crônica me despertou lembranças gostosas da infância e me emocionou quando me apresentou a breve história de sua amiga: certamente, GRANDEZA e GENEROSIDADE eram sua marca registrada.
Consolo ao seu coração!
Fernando, vc se supera a cada trabalho. PARABÉNS!!!
Terê
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