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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A outra pátria em chuteiras


por Mariana Camaroti, de Buenos Aires

Engana-se piamente o cidadão que crê que o Brasil é a única nação em que o futebol é a comida de um povo e onde a Copa do Mundo é vivida de maneira transcendental, como os dias de momo. Piamente. O futebol está para a Argentina como a praia está para o carioca; mas existe ali algo mais. E eu diria que é o tango – este lamento típico dos hermanos – que faz com que eles saibam sofrer remoendo amores – neste caso, ídolos – do passado. E aceitar o sofrimento como parte do amor. Para mim, isso explica por que futebol e argentino nasceram um para o outro. O país que pariu Ernesto Che Guevara, San Martín e Evita Perón e que tem como maior ídolo – ou melhor, deus – Diego Armando Maradona não pode ser subestimado quando de chuteiras se fala.

Era o meu terceiro Mundial no país vizinho desde que para lá me mudei, casei, comprei casa, descobri livros e tive filhos; mas este ano, quando pendurei as bandeiras alvo e celeste e a verde e amarela na minha janela, foi diferente. Sem que eu me desse conta, havia crescido dentro de mim um sentimento de pertencimento que jamais sentira. E isso não tem só a ver com meu marido argentino, mas também com a minha história com o portenho, com o saber e poder viver – bem – ali mantendo as minhas raízes.

Já no primeiro jogo, aceitei com naturalidade torcer com quase a mesma intensidade do que torcia para a canarinha. E olhe que eu odeio Maradona e não sou fã de tango. Mas a admiração deles pelo Brasil e como almejam ser como os brasileiros me toca sempre.

Mas bem, a bola começou a rolar e, em dia de partidas da Argentina, eu vestia celeste e branco, afirmava a torto e a direito que torcia por eles, como um invasor que tenta ganhar confiança do colono. Mas não, eu havia me tornado uma verdadeira torcedora de Messi, Mascherano, Higuaín e Lavezzi. E, mais tarde, de Romero. Aprendi os nomes como no campeonato de 1994, sabia quase de cór. Nem ideia de esquema tático e muito menos quem estava no grupo da Argentina. Mas a paixão me movia. E eu sei por quê. A Copa era no Brasil, o meu país, e torcer pelas duas seleções era confirmar a minha paixão pelas minhas duas casas. Como se isso reduzisse a distância.

Era lindo ver as crianças vestindo acessórios para ir ao colégio do início ao final da Copa, bandeirinhas nos carros, bandeiras desbotadas nos balcões e uma infinidade de propagandas que reafirmavam o amor pela pátria e sua independência em momentos de alta inflação e possibilidade de novo calote da dívida. Quando vi David Luiz soluçar dizendo que o povo sofrido brasileiro merecia o título, meu compadecimento se estendeu aos argentinos. Também mereciam. Vê-los cantar aquele hino sem graça como um grito de guerra, sem letra, só com urros, me tocava.

Além de mexer com a fantasia que o argentino cultiva do que vem a ser o paraíso, ter o Brasil como sede do Mundial despertou pelo menos dois sentimentos: 1. É logo ali, vamos ocupar o território tupiniquim; 2. Inveja de não sermos nós os anfitriões. Para os hermanos, o Brasil é a nação em que tudo deu certo e que, quando não dá, se sabe levar com a alegria. Invejam essa – para eles – qualidade nobre do povo brasileiro.

A torcida argentina foi invadindo o país sede à medida que sua seleção avançava. E veio o terceiro e mais forte sentimento, aquele de humilhar o Brasil na sua própria casa. A rivalidade, que se restringe apenas ao futebol, claro está, incomodava cada vez que os argentinos cantarolavam sem vergonha perguntando ao Brasil o que se sente; e cada vez que os brasileiros torciam pelo rival da seleção alvo e celeste, até mesmo quando este foi o Irã. E tudo foi potencializado pela imprensa e pelas redes sociais.

As duas seleções progrediram. Perdemos de 7x1 e ficamos em quarto com um país se sentindo humilhado; eles chegaram a segundo e, ainda que feridos, tiveram sua paixão pelo futebol enaltecida, renovada. E eu nunca entendi de onde vem essa rivalidade. Será a minha compaixão, sentimento de pertencimento ou será o meu marido. Mas desconfio que é o meu espírito de atleta que ainda me faz admirar quem joga com raça e paixão.

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Mariana Camaroti, jornalista, mudou-se pra Buenos Aires depois de se apaixonar por um argentino; mãe de dois argentinos, torcedores do Boca Juniors como o pai, e amante das livrarias portenhas. Texto escrito especialmente para o Nota de Rodapé

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