Ainda estou tentando entender o que aconteceu na semifinal contra a Alemanha. De vez em quando tenho um pesadelo. Sonho com gols adversários. São como fantasmas. Como o garotinho do filme “Sexto sentido”, eu digo “Vejo gols da Alemanha...”. “Com que frequência, Carlos?”. “Todos os dias!”. Para driblar o trauma, tento esquecer. Vim para a Chapada Diamantina, na Bahia, de onde escrevo esta crônica. Para mim, a Copa do Mundo acabou depois dos 7 X1. Para alguns, ela nem deveria ter começado.
Apesar da goleada humilhante, vou falar da Copa pela última vez.
Primeira fase. Meu espírito ainda dividido: #nãovaitercopa X #vaitercopa. Tinha que ter escrito dois textos durante a semana, mas não deu: fiquei vidrado na TV vendo e revendo lances dos primeiros jogos.
Bateu o desespero! Cheio de trabalho, mais apertado que saco de cantor sertanejo, mas nem um pouco a fim de trabalhar. Ainda mais quando o Gongom me ligou perguntando se eu queria assistir ao jogo da Itália no Bexiga e, na sequência, ver o Japão na Liberdade. Lógico! Copa do mundo: maratona étnica em São Paulo! Bem melhor que Fun Fest da FIFA no Anhangabaú.
Quando desci do carro na 13 de maio, um menino veio perguntar se eu era italiano: como ia ver a Itália no Bexiga, pus minha velha boina do Pezzutti, uma camisa da Azzurra e um lenço vermelho no pescoço (será que italiano usa lenço vermelho?...); sei lá, resolvi me fantasiar. Até então só tinha acompanhado a Copa pela TV. E a TV mostrava uma Copa carnavalesca. Torcedores/foliões indo ao estádio fantasiados: mexicanos de sombrero, ingleses de cavaleiros templários, alemães à la Oktoberfest... Um desfile de estereótipos ao qual eu aderi ingenuamente, achando que no Bexiga eu encontraria meus pares. 13 de maio vazia... Portas fechadas, janelas fechadas. Um ou outro boteco aberto, mas tudo vazio. Respondi pro menino cantando a Tarantela e saí andando, me sentindo o Peppino di Capri.
Claro que não havia nenhum italiano no Bexiga! O Bexiga, hoje, vive da fama, nada mais. É o que dá grana pras cantinas da Dom Orione. Anos atrás, durante uma rifa na festa italiana de N. Sra. Achiropita, o mestre de cerimônias começou a fazer aquelas piadas sem graça para ocupar o tempo: “Quem aqui é italiano?”. Ninguém levantou a mão. “Quem é filho de italiano?”. Um ou outro levantou a mão. “Neto?...”. Vários. “Bisnetos?...”. Muitos levantaram a mão, inclusive eu. “Tataranetos?...”. Grande maioria. “E agora levanta a mão quem é descendente de japonês... Vocês vieram na festa errada!”. Gargalhada geral. Achei a piada besta, mas dei risada.
Na rua Santo Antônio, fomos ao Bar do Amigo Giannotti, a melhor fogazza de São Paulo! Portas fechadas. O Giannotti é genial mas imprevisível. O bar funciona de acordo com o estado de espírito do dono. Às vezes abre de segunda. Às vezes antes das 20h. Às vezes simplesmente nem abre. E não tem conversa. Uma amiga que morava no Bexiga, a Ciça, quis fazer uma festa de aniversário no Giannotti e ligou para fazer as reservas: o Amigo, pouco amigo, respondeu que não gosta de festas – muita gente, muito barulho... “Que medo de ganhar dinheiro, Giannotti!”, a Ciça bateu o telefone.
Em busca de alguma coisa italiana, entramos numa cantina, fugindo do glamour caríssimo da 13 de maio, e vimos Itália X Inglaterra tomando vinho nacional a 50 reais e comendo azeitonas pretas e uma gororoba sem gosto que atendia pelo nome de antepasto de berinjela, bem diferente do antepasto que o finado Giovanni servia num casarão na Brigadeiro Luis Antônio onde hoje funciona mais um estacionamento. Pra fazer jus à fama do bairro, decorações em verde, vermelho e branco, quadros de praias da Sicilia e um cardápio bilíngue. Tinha uma família animada perto da gente que torcia gritando “Que cazzo! Porca miséria! Avanti, Itália!”, pelo menos alguma coisa para alegrar o ambiente, que estava bem desanimado. A Itália ganhou, mas saímos frustrados.
Segunda parada: Liberdade. Talvez estivéssemos mal informados, porque custou a achar algum movimento. O jogo começaria às 22h, Japão X Costa do Marfim, duelo pouco atrativo, mas o futebol era apenas um pretexto para encontrar japoneses animados e salvar a nossa peregrinação étnica pela cidade. Nada de novo no Largo da Pólvora. A velha Liberdade com suas lâmpadas japonesas, fachadas japonesas, ideogramas, gatinhos com a pata levantada e budas de louça, mas nenhum japonês na rua pra contar a história. Na rua da Galvão Bueno, o karaokê estava lotado, fila para entrar, segurança na porta exigindo comandas, e ninguém com cara de quem ia assistir ao jogo. Fomos ao restaurante Samurai na rua da Glória, mas se fôssemos ver o jogo lá, só de cerveja teríamos que deixar as calças. Fiquei tomando uma latinha na porta e conversando com o manobrista. Ele me contou com orgulho que é amigo do brasileiro que venceu o maior concurso televisivo de karaokê do Japão. Isso deu notícia no Brasil: um brasileiro, mulato, fazendo sucesso na terra do sol nascente. Perguntou se eu queria ver uma foto deles juntos, querendo provar que estava falando a verdade. “Tudo bem”, eu disse. Mas demorou tanto pra encontrar a tal foto no celular que acabei desistindo. “Fica pra uma próxima!...”.
Pra não perder o começo do jogo, paramos num boteco qualquer, desses botecos pasteurizados que vêm dominando a cena em São Paulo, substituindo os velhos balcões de madeira. No fundo do bar, a TV mostrava as duas seleções perfiladas, enquanto tocava o hino nacional do Japão. Havia dois homens conversando no balcão, além do dono do bar, distraído com um bolo de notas fiscais. Na mesa ao lado, dois japoneses! Tínhamos ido à Liberdade por causa deles. Mas aqueles dois não queriam nada com a Copa. Clubbers, provavelmente sanseis, de costas para a TV, faziam o esquenta para a baladinha da noite, tomando vodca com energético. Conversavam em português. Riam como japoneses.
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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
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