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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

No DNA

por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna*

Eram pelo menos quinze horas de estrada. Na rodoviária do Plano Piloto, eu embarcava no ônibus que me deixaria em Ribeirão Preto, Campinas ou São Paulo, às vezes Rio ou mesmo Porto Alegre, do outro lado do mundo. Neste último caso, como não havia uma linha direta regular, o jeito era ir até a capital paulista, descer no Glicério e tomar outro ônibus, para mais umas vinte horas de chão até o destino final. Assim cheguei a Buenos Aires e Assunção. Mas eu não reclamava de nada, qual o quê? Aos vinte anos, a energia é infinita. Ah, e nessa época, para mim o Brasil rumo norte ainda era uma total abstração.

Mal o ônibus arrancava, eu me enfiava na cabine do motorista, sempre que nela houvesse uma poltrona adicional, privativa de funcionários da empresa, e perguntava: posso viajar aqui? Foram muitas noites comendo asfalto naquela vitrine invertida, de olho na estrada, ouvindo as modas de viola que faziam companhia ao motorista solitário, em sua dura tarefa de não dormir e nos entregar inteiros muitos quilômetros à frente. Viajar sozinha jamais me incomodou, bem ao contrário. E, talvez pelo espanto que causava meu atrevimento de me aboletar por minha conta na poltrona da cabine, nunca nenhum motorista, aliás, ninguém, me disse qualquer inconveniência, ou tentou uma aproximação abusiva.

Numa dessas, saí de Araraquara rumo a Ribeirão Preto, para de lá embarcar até Brasília, às dez da noite. Não existia essa história de reservar passagem, nem compra antecipada. Quando cheguei ao guichê da companhia, em Ribeirão, fui informada de que o ônibus que eu pretendia tomar estava lotado. Bateu o desespero. Engoli o pânico e perguntei qual seria a opção, pois passar a noite sozinha, naquela rodoviária (mais de trinta anos atrás, nem te conto como era), me parecia aventura demais, veja só. Você pode ir para o trevo da Anhanguera, de táxi, fazer parar e tentar embarcar no ônibus que vem de Campinas, sugeriu o funcionário. Topei na hora, e consegui, totalmente alheia aos riscos, e talvez por isso protegida deles. Mais uma cabine para a minha coleção.

As luzes de Catalão e Araguari nas madrugadas me sugeriam a enormidade do mundo à minha espera. E eu o ia perseguindo, nas paradas tristes e sujas dos cafundós de Minas e Goiás, cruzando o cerrado de árvores encarquilhadas, que o pasto e a soja já engoliram faz tempo. Quando não conseguia viajar na cabine, eu ia junto com os outros passageiros, e rapidinho rolava um papo. Assim percebi que muita gente adora ouvir a narrativa da própria vida, especialmente quando contada à “vítima” da poltrona ao lado, uma total desconhecida. Sempre com ênfase nas dores e injustiças, mas também nos causos engraçados. Para quem estamos vendo aquela única vez, a nossa versão sempre será a única, verdadeira e definitiva. O curioso é eu mesma nunca ter embarcado nessa viagem, ficava só ouvindo.

Quilômetro vai, quilômetro vem, a vizinha, que devia ter uns vinte e cinco anos, me contou que se casaria no fim de semana, com o amor da sua vida, que ele havia terminado o noivado com uma amiga dela poucas semanas antes, a tempo de se livrar do compromisso herdado numa pequena comunidade rural e ir ao encontro da paixão, que ferveu quando olhares se encontraram numa festa religiosa. Uma grande história, e eu nem respirava, com medo de perder algum detalhe. Ficamos amigas de infância, naquelas poucas horas de noite fechada sobre rodas, nos despedimos como velhas conhecidas, ela me convidando para a festança, e pronto acabou.

As viagens de ônibus ficaram para trás. Os aviões e, de vez em quando, os deslizantes trens do tal de primeiro mundo, são totalmente outra coisa. E eu também, mas com o DNA da BR infiltrado.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

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